Pelo volume minucioso de pesquisa, a biografia de Cruz e Sousa por Uélinton Farias Alves (Cruz e Sousa: Dante Negro do Brasil. Rio: Pallas, 2008) é daqueles livros que aumentam os conhecimentos sem por isso aumentar o nosso conhecimento do poeta enquanto poeta, ocorrendo aliás, que nada ou muito pouco foi acrescentado em matéria estritamente biográfica, aspecto, aliás, que mais tem atraído o interesse dos estudioso, para nada dizer das informações que se repetem de livro para livro, com incorreções que Uélinton Farias Alves se dá ao prazer de corrigir, uma por uma, à medida em que aparecem, esporte em que R. Magalhães Júnior se deleitava, agora ele próprio submetido ao mesmo tratamento.
Do ponto de vista crítico, este autor pertence, em terminologia comtiana, à idade mística em que Cruz e sousa não era um poeta, mas "o Poeta Negro", assim sistematicamente tratado, desde o título, ao longo do volume, tornando a leitura tediosa como na retórica neoclássica tinha-se por elegante designar cada escritor por uma alcunha tida por literária ou erudita. É um falso recurso que perde originalidade com o primeiro emprego, transformando-se em estafado lugar-comum, acrescido, no caso, de implicações racistas. Cruz e Sousa não se distinguia, nem se distingue, por ser negro, mas por ser poeta: o subentendido preconceituoso apenas procura singularizá-lo, com evidente mau gosto, por se inscrever numa poética aristocratizante e iniciática (na qual, aliás, não era o único).
Da "idade teológica" em que, nas catacumbas, Nestor Vitor, rodeado de acólitos, celebrava suas missas pascais, a obra e a crítica de Cruz e Sousa passaram para a idade metafísica, em que Missal e Broquéis eram, não livros de literatura, mas Livros Sagrados, sacrários de uma tradição gnoseológica que se perdia e burocratizava, chegando à "idade positiva", inaugurada pela "Edição do Centenário", Obra Completa (1961) e, por assim dizer secular, mais Poesia e Vida de Cruz e Sousa, de R. Magalhães Júnior, no mesmo ano.
Andrade Muricy, que organizou a Edição do Centenário com a sua delicada sensibilidade e insondável ciência simbolista, pertence, em partes desiguais, a essas três épocas, podendo ser visto como o São Paulo da religião cruziana, encarregado de pregá-la ad gentiles, para o que, quando necessário, sabia valer-se dos deuses desconhecidos e seus templos. Isso significa que herdou o misticismo da Capela Simbolista sem rejeitar totalmente as contaminações dos novos tempos, digamos, as inclinações retóricas do helenismo. De fato, era impossível viver àquela altura ignorando a pujança do Parnasianismo e a presença dominadora de Olavo Bilac. Já se disse, e com razão, que tecnicamente Cruz e Sousa é poeta parnasiano. Na ordem histórica, o Simbolismo é uma ilha na tumultuosa torrente parnasiana, não uma "escola" que lhe tivesse sucedido, ao contrário do que afirmam os manuais e, bem entendido, os professores que os repetem: são "escolas" rigorosamente contemporâneas.
A Edição do Centenário marcou uma data na bibliografia cruziana, não somente pela autoridade do organizador e os inúmeros inéditos e dispersos que reuniu (exemplo seguido por Uélinton Farias Alves), mas também porque assinalava, àquela altura, uma nítida mudança de idade crítica, rejeitando esta biografia para uma idade anterior, aquela em que expressões retóricas como "Cisne negro" ou "Dante negro" ou assemelhadas passavam por juízos de valor. Os "últimos portadores diretos da tradição Cruz e Sousa-Nestor Vitor" eram, ele próprio mais Tasso da Silveira, filho da Silveira Neto, passando daí para Emiliano Perneta, todos presos a Nestor Vitor "por inalienáveis obrigações de profunda afetividade e de admiração".
Essa a família real do Simbolismo brasileiro, ou, se quisermos, o centro do sistema solar, como tal reconhecido e tacitamente aceito, muito embora nem tudo o que produziram seja da mais alta qualidade: recolhendo indiscriminadamente todos os inéditos ou esquecidos de Cruz e Sousa, Uélinton Farias Alves talvez lhe haja prestado um desserviço. Nas palavras de Andrade Muricy, tais espólios são muitas vezes um "enorme amontoado de escórias, produções indiferentes, repetidas, tateantes, hesitantes, ainda retidas no limbo da inadequação expressional", cujo conjunto diminui, justamente, o nível de qualidade do restante.
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