Em que medida o homem Lima Barreto – mulato, com boa formação cultural, mas de classe média baixa e alcoólatra – se vê refletido em sua obra, mais especificamente em Recordações do Escrivão Isaías Caminha?

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Lima Barreto tem em comum com Isaías Caminha a situação do intelectual pobre e mulato no começo do século 20, no Brasil. No próprio romance, o narrador diz que o motivo de escrevê-lo foi mostrar que os fracassos de pessoas "de sua condição" não se deviam à raça, mas a fatores sociais. Nas Recordações, Lima Barreto apresenta uma situação e um destino possíveis, para investigar e discutir um problema, que lhe dizia respeito pessoalmente, é verdade, mas dizia respeito também a toda a sociedade brasileira. As teorias racistas que circulavam pelos meios intelectuais naquele momento condenavam o povo brasileiro, "um povo mestiço", à degeneração. Já que era assim, não se podia fazer nada por ele, o que desobrigava as elites de um compromisso de cidadania, entre outras coisas, de uma política pública de educação. Então, quando Lima Barreto cria o Isaías, não está querendo desabafar mágoas, mas questionar ideologias altamente perigosas, as mesmas que, na Alemanha, levaram ao nazismo. Outro aspecto importante, do ponto de vista propriamente individual do protagonista, é a travessia que ele faz, ao longo do romance, do ponto de vista do pai – branco, erudito, socialmente bem aceito – para o da mãe – pobre, negra, obscura. Essa travessia representa uma tomada de consciência de si mesmo, um reconhecimento de sua situação real na sociedade, sem mistificações.

De que maneira o livro faz um retrato da imprensa carioca da época e de como ela se relacionava com o poder e a sociedade na Primeira República?

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A imprensa é quase sempre satirizada na obra de Lima Barreto. Ou seja, ela é confrontada violentamente com aquilo que deveria ser e não é. Por isso, o efeito da narrativa sobre ela é de forte rebaixamento. O dono do jornal é aproveitador, talvez o único verdadeiro capitalista das histórias de Lima Barreto, os repórteres são medíocres, e tudo respira a atmosfera de uma grande farsa. O jornal em que Isaías trabalha, O Globo, é um jornal de oposição, mas não por convicção política e sim para manipular a opinião pública e ganhar poder de barganha junto ao governo. O apelo ao sensacionalismo é tanto, que até notícias são inventadas para atrair a atenção do público e vender mais. Como Machado de Assis havia dito cinquenta anos antes, a imprensa não estava à altura de seu papel. Nem por isso era inócua ou irrelevante, como nos mostra o romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Essa poderosa máquina de fabricar ilusões, manipulando particularismos, disputas provincianas e a credulidade do público, era o "quarto poder fora da Constituição".

Lima Barreto não era obcecado pela forma, como Coelho Neto, mas tinha um estilo único e parece anunciar uma literatura mais moderna, despojada, contundente e profundamente conectada com o seu tempo. Qual o seu legado para as gerações que se seguiram?

A distância de Lima Barreto para os seus contemporâneos é enorme. Ele percebeu que o estilo, aqueles floreios verbais valorizados na época, estavam envelhecendo, reconheceu e rejeitou as marcas de classe dominante implicadas na linguagem e lançou-se numa tentativa solitária, independente, fundada em suas próprias reflexões, perspectivas e instintos. Provavelmente, essa atitude de tipo romântico (o recurso às próprias razão e sensibilidade) salvou Lima Barreto do esquecimento a que muitos de seus contemporâneos – mais bem aceitos na época – foram relegados. Mas o recurso a si mesmo, a rejeição das certezas correntes, trouxeram consigo outros problemas: uma grande dose de solidão e incerteza. A ironia que nasce desses movimentos contrários, entre confiança e incerteza, é o propriamente moderno nas obras de Lima Barreto. É ela que dificulta a apreensão ingênua ou simplista dos problemas e força a amadurecer. No romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, que agora faz cem anos, desde sua publicação em folhetim, esse confronto está no cerne da narrativa: a grande confiança alienada de Policarpo, o patriotismo, é minada ponto por ponto até ceder a uma visão crítica do país, aberta e questionadora. Em primeiro lugar, eu diria que o legado de Lima Barreto foi o radicalismo formal e político com que ele se dispôs a fazer literatura. Ele constituiu e integrou uma esfera de pensamento crítico sobre a realidade brasileira, na qual estava implicada uma renovação estética e uma concepção nova da linguagem. Lendo os seus contemporâneos, é possível avaliar melhor a radicalidade da escrita despojada de seus romances e contos, o quanto há de trabalho consciente nesse enxugamento. A verdadeira ojeriza que Lima Barreto tinha do particularismo e da mediocridade, da vida intelectual domesticada e autossatisfeita, das vaidades retumbantes de província, também é uma atitude saudável e necessária até hoje. (PC)