Você tem medo de quê?

Primeiro, o sobressalto. Depois, o coração acelera, vem a palidez, a respiração ofegante, as mãos suadas, os calafrios e tremores, a contração do abdômen. Não há como escapar das sensações físicas, combinadas ou alternadas, que acompanham a reação psicológica frente ao perigo, real ou imaginário. Uma reação inerente a reis e plebeus, pensadores e iletrados. "Mi­­nha mãe pariu gêmeos, eu e o medo", disse o filósofo Thomas Hobbes em sua autobiografia. Os tempos eram propícios para tais conclusões. Ele nasceu de parto prematuro, em 1588, enquanto a mãe fugia da aldeia da Cornualha (no sul da Inglaterra) quando a Invencível Armada de Felipe II se aproximou das costas inglesas.

O teólogo Marc Oraison (1914-1979) concluiu que o homem é por excelência "o ser que tem medo". Pela mesma época, Jean-Paul Sartre (1905-1980) dizia: "Todos os homens têm medo. Todos. Aquele que não tem medo não é normal, isso nada tem a ver com a coragem". E há o maior de deles, o medo da morte, decorrente do fato de o homem ser o único entre os se­­res vivos a ter consciência que um dia morrerá. Nem Jesus Cristo escapou a esse sentimento demasiado hu­­mano. Diante do medo da morte anunciada, ele foi ao jardim Getsêmane para orar, levando consigo três dos seus discípulos mais íntimos, embora eles não tenham feito mais do que dormir.

O medo tem sido moldado por diferentes culturas. Nos primórdios, as causas decorriam de perigos concretos, como ameaças de ataques de animais selvagens e tribos inimigas. Com o passar do tempo, os homens começaram a criar seus próprios medos. O que dizer das interpretações do Apocalipse de São João, que mergulhou os cristãos na aflição do anunciado fim do mundo no ano mil, versão depois reeditada para o ano dois mil? Nesse meio tempo, no começo da Idade Moderna vigorou entre os navegadores o temor do mar infinito diante da incerteza da volta, um pavor manifestado por Luís Vaz de Camões (1524-1580) em Os Lusíadas.

Atualmente o medo já não é só uma sensação que serve de alerta para algum perigo, desencadeando uma reação protetora. Predomina hoje um sentimento vago de apreensão, uma sensação indeterminada de temor mesmo quando não existe razão concreta para isso. O medo agora é de perder o emprego, de ser assaltado, de acidente de carro, de ser traído, de envelhecer, de perder o filho para as drogas, de contrair uma nova doença. Portanto, o medo é um sentimento inato, mas também pode ser uma construção histórica.

Esse é o caso dos temores imaginários, ou dos irracionais, como o medo de dentista ou da polícia. Mas há aqueles com os quais todos nascemos, como o medo do fogo, da morte, do desconhecido, de desequilíbrios. Já os medos reais decorrem do pós-trauma, como a pessoa assaltada que se fecha em casa, que não anda de avião por ter assistido a um acidente aéreo. Outros são antes uma prudência, pois nos mantém vivos, impedindo-nos, por exemplo, de pular no mar sem saber nadar, de pular do avião sem para-quedas. Outros trazem prejuízos por levar à inação, como o medo de desafios, de tomar decisões.

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Por que precisamos sofrer? A vida não seria melhor sem dor? Ainda que saibamos a resposta, parecemos nunca estarmos convencidos de que o sofrimento é ine­­rente à condição humana, como advertiu Friedrich Nietzsche (1844-1900). O tema é dos mais discutidos desde os primeiros pensadores, não sem controvérsias, deixando claro que o homem nunca soube lidar com esse sentimento. Síntese da negação do sofrer, Sófocles (496-405 a.C.) chegou a pontificar que não ter nascido é a maior das venturas, e uma vez nascido o mal menor é voltar o quanto antes para o lugar de onde se veio. Mas o que é sofrimento? Existe um pro­­pósito para ele, seja de ordem física ou psicológica?

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Arthur Schopenhauer (1788-1860) entendia a existência como causa primeira do sofrimento. Dizia que existir é querer, desejar, o que nos faz sofrer; o oposto disso, a felicidade, é o não querer. Repletos de desejos que somos, temos de admitir, portanto, que nascemos para sofrer. Foi levando a termo tal constatação que muito antes do filósofo alemão o pai dos estóicos, Zenão (495-430 a.C.), já re­­­­­co­­mendava a completa resignação. Os seguidores Sêneca e Epiteto levaram adiante essa fórmula do "suporta e renuncia" para aguentar o estar no mundo, dando a compreender que seria debalde a preocupação diante do sofrimento, qualquer que seja, tido e havido como preparo do destino.

A Bíblia reforça esse determinismo ("Homem, nascido de mulher, com dias escassos e fartos de tormentos", Jó, 14:1) e explica sua origem. Ao reelaborar o conceito de pecado de Adão e Eva, o cristianismo atribuiu-lhe um valor maior de "pecado original", uma dívida espiritual que nasceria com o homem e não só explicaria a gênese do sofrimento como ainda determinaria a necessidade de um salvador para a humanidade. Daí decorre que, para além do propósito religioso, Jesus é, muito possivelmente, o maior exemplo do que se deve fazer com o sofrimento: dar um significado a ele para dar um significado à própria existência.

Não há existência possível sem sofrimento, ainda que não da estatura do de Jesus. Cada um está sujeito às modulações do trauma e de sua própria subjetividade intrínseca. Mesmo diante de um destino do qual não se tem controle – a morte, uma doença incurável – é possível encontrar um significado para a vida, atesta o criador da escola de logoterapia, o psiquiatra Viktor Frankl. Segundo ele, talvez até se consiga encontrar o sentido mais profundo possível, porque então se tem a oportunidade de testemunhar a mais humana de todas as capacidades humanas, a de transformar uma tragédia num triunfo pessoal, numa realização no nível humano.

Frankl foi, ele próprio, um exemplo dessa autotranscendência. Judeu nascido em Viena, em 1905, aos 37 anos se viu num dilema. Ou fugia do nazismo rumo aos Estados Unidos, como faziam os intelectuais da época, ou ficava junto dos pais na Áustria. Ficou e acabou preso pelos nazistas. Durante 38 meses, entre 1942 e 1945, foi internado em quatro campos de concentração, inclusive Auschwitz. Ele sobreviveu ao Holocausto, mas os pais e a esposa não tiveram igual sorte. Entrou em Auschwitz com o manuscrito completo do seu primeiro livro escondido no bolso. Foi nesse manuscrito que desenvolveu a ideia do significado incondicional da vida.

Morto em 1997, aos 92 anos, gastou algum tempo esclarecendo mal entendidos. Para os editores americanos, Frankl saiu de Auschwitz com um novo ramo de psicoterapia, mas não foi bem assim. O conceito de que a vida faz sentido sob quaisquer condições foi concebido antes dessa experiência, como provam os manuscritos. Ele afirmou certa vez que o campo de concentração serviu apenas como um campo de provas para confirmar sua convicção. Convicção nascida do apoio a jovens com vazios existenciais (fracassados, potenciais suicidas, dependentes químicos), somada a uma formação médica e filosófica, com especialização em neurologia e psiquiatria.

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A partir dessa dupla vivência, antes e depois de Auschwitz, Frankl criou aquela que seria denominada de "terceira escola vienense de psicoterapia", ou logoterapia, isto é, terapia através da busca de sentido. A premissa da logoterapia, de que a vida sempre tem um sentido, tem um significado sob quaisquer circunstâncias, enfatiza duas capacidades especificamente humanas: a autotranscendência, ou seja, a capacidade de dirigir-se a objetivos fora de si mesmo, e o autodistanciamento, ou a capacidade de tomar distância dos sintomas.

Frankl indica três caminhos que dão sentido à vida. O primeiro é através do trabalho ou da realização de um feito, o segundo passa pelo amor (o amor da forma mais ampla possível) e o terceiro, por meio do sofrimento. Sim, do sofrimento. Mas Frankl adverte: a terceira via só vale se não houver outro jeito. É o que ele chama de sofrimento nobre, aquele que não podemos evitar nem modificar. Então, precisamos transcendê-lo, extrair o melhor dele, transformá-lo numa realização. É quando brota a mais humana de nossas capacidades, a de transformar uma tragédia num triunfo pessoal, numa realização no nível humano. Nosso meio social está coalhado desses exemplos.

Lucinha Araújo, mãe do cantor e compositor Cazuza, morto por causa da aids, em 1990, superou o sofrimento criando uma ONG para cuidar de crianças e adultos soropositivos. O cantor inglês Eric Clapton compôs uma de suas canções mais emotivas (Tears in Heaven, ou Lágrimas no Paraíso) em homenagem ao filho que morreu ao cair da janela de um apartamento. Ambos encontraram na tragédia dos filhos a síntese da filosofia de Nietzsche: "quem tem porque viver, pode suportar qualquer como viver". Descobriram que o sofrimento nos faz melhores, ainda quem nem todos consigam tirar a melhor lição da dor.