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Telegraph Avenue se passa em Oakland e Berkeley, mas nasceu em Los Angeles, em 3 de outubro de 1995, o dia em que o juiz Lance Ito abriu o veredicto de O. J. Simpson e o revelou para o mundo.

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Se senti algo sobre o caso antes de o veredicto ser anunciado, foi só que parecia bem óbvio que Simpson era culpado e que devia ficar preso pelo resto da vida. Quando ouvi as notícias do tribunal, fiquei chocado, mas na verdade não me surpreendi. Na época eu era casado com uma advogada (ainda sou casado com ela, mas hoje ela escreve livros). Eu sabia que a acusação, assim como a defesa, tinha um trabalho a fazer, e que se o fazia mal, poderia ser derrotada. Então minha mulher me ligou de um tribunal federal no centro de Los Angeles, onde trabalhava. “Estamos olhando das janelas”, ela me disse. “As pessoas estão dançando na rua.”

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Isso me surpreendeu. Liguei a televisão e vi cenas de aparente júbilo da comunidade negra de Los Angeles, e isso me pegou completamente desprevenido. Disse “aparente júbilo“ porque eu tinha noção de que a única coisa que sabia sobre a reação dos negros ao veredicto era o que eu podia ver na tela da minha televisão. Não havia pessoas negras na minha quadra da Orange Drive, no Hancock Park. Na época eu tinha um amigo negro. Não ia ligar para ele e saber se ele estava exultante.

Eu sabia o bastante sobre a televisão e o modo como ela retratava os negros – o modo como retratava tudo – para não aceitar de cara a conclusão de que todos os negros estavam encantados em ver O. J. se safar. Mas era evidente que muitos negros estavam prontos, pelo menos, a parecer encantados em frente às câmeras de tevê. E isso me surpreendeu. Surpreendeu muitos brancos. E quanto mais brancos como eu, nos dias seguintes, expressaram a surpresa que sentiram em ver pessoas dançando nas ruas porque um homem que obviamente tinha matado a esposa escapou da justiça, mais eu ficava triste.

Essa tristeza tinha pouco a ver, Deus me perdoe, com as vítimas. Não era pelo erro da Justiça ou pelo modo como essa celebração pública sugeria o grau em que os negros se sentiam alienadas do – e brutalizadas pelo – sistema de justiça criminal e queriam, no mínimo, algum tipo de recompensa bruta pela absolvição dos homens que tinham espancado Rodney King três anos e meio antes. Eu estava triste porque sabia que meu espanto com a celebração pública, como o espanto de qualquer branco espantado por aquelas circunstâncias, estava diretamente ligado à ausência de negros na minha vida. Esse era o indicador piscando no meu painel, avisando que minha ligação com as vidas e os sentimentos dos negros tinha sido cortada.

No outono de 1969, quando eu tinha 6 anos de idade, minha família se mudou para Columbia, no Maryland. Columbia era uma cidade nova. Uma comunidade planejada, uma Cidade do Futuro construída do nada em meio ao que tinha sido uma plantação de tabaco, a cerca de 50 quilômetros de Washington. Era manifestamente utópica em seus objetivos, transformadora em suas ambições. Tinha grandes e bem cuidados trechos de espaço público ao ar livre, escolas sem divisões por turma, transporte público acessível, um único centro de culto ecumênico compartilhado por todas as religiões, ruas batizadas em homenagem a obras de grandes poetas e romancistas. E o mais assombroso de tudo, essa Cidade do Futuro era integrada.

Até ali eu tinha conhecido muito poucos negros, e não tinha consciência de raça exceto pela que extraía da televisão e pelo pouco que entendia das conversas dos adultos sobre o tema, e nem tudo era esclarecedor. Martin Luther King Jr. assassinado; cidades em chamas; o penteado estilo Montgolfier de Angela Davis; os desconcertantes empresários brancos gananciosos de Curt Flood; os alertas cifrados de minha avó quando ela me levava para passear na vizinhança de sua casa em Washington; Sammy Davis Jr. cantando “Mr. Bojangles” no “The Flip Wilson Show”.

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Um dia no começo do meu primeiro outono em Columbia, entrando no primeiro ano, me vi posto ao lado de um garoto negro. O nome dele era Darius, e eu simplesmente sentei ali, maravilhado com ele, passando por aquele momento clássico – na verdade banal – do Primeiro Contato do menino branco. Mas o que mais me impressionava eram as mãos dele. A pele das costas das mãos era de um tom complexo que tinha elementos de marrom e de um roxo brilhante. E quando Darius virou as mãos – quando permitiu que eu as virasse – a pele das palmas era rosa como a das palmas das minhas mãos. Ao longo das bordas de cada mão e dentro de cada pulso passava uma misteriosa fronteira entre o rosa e o marrom que percorri vigilante com a ponta de um dedo. Parecia que havia uma explicação profunda, a resposta para alguma pergunta que eu nem tinha como começar a fazer, estava escondida nas palmas rosa das mãos dele e no modo como elas contrastavam com o marrom das costas das mãos.

A ideia da construção da nova cidade de Columbia, como eu vim a compreendê-la quando criança, era tornar a vida nos Estados Unidos melhor. Um dos modos encontrados pelas pessoas que construíram Columbia para fazer isso era dar às pessoas brancas e negras a chance de participar da atividade radical de viver umas ao lado das outras, estendendo sacos de dormir em grutas uns para os filhos dos outros, nadando na água da piscina pública que tinha sido tingida em medidas iguais pela urina desses mesmos meninos que se misturavam livremente uns com os outros, tocando nas mãos um do outro, se deixando ser tocados. Na rua em que cresci, havia mais famílias negras do que brancas. Briguei, brinquei, jantei com, provoquei, admirei, discuti com, cobicei, aprendi a dançar com, tive quedas por, vi tevê e finalmente tomei cerveja com garotas e garotos negros desde que tinha seis anos até quando saí de lá para entrar na faculdade.

O autor

Michael Chabon venceu o Prêmio Pulitzer em 2001 pelo romance As Aventuras de Kavalier e Clay, publicado no Brasil pela Record. Telegraph Avenue, seu livro mais recente, saiu pela Companhia das Letras e fala de dois casais donos de uma loja de discos que enfrentam uma série de dificuldades – algumas delas ligadas a questões raciais – na Califórnia, em 2004.

O sucesso desse sonho, sonhado originalmente por James Rouse, pode ser objeto de discussão, mas desde o dia em que revolvi o mistério da palma da mão de Darius, mergulhei em uma intimidade com as pessoas negras, com toda a falta de pudor e a coragem do coração visionário de Rouse e do meu próprio pequeno coração.

Professores negros me ensinaram em salas onde eu sentava ao lado de crianças negras de diversas origens – pobres e de classe média, vindas do sul e do norte, do campo e do gueto, filhos de militares, de advogados e de médicos negros – que a luta pelos direitos civis era uma parte brilhante da história norte-americana, mais ou menos nos mesmos moldes da Segunda Guerra Mundial. Um conflito terrível havia consumido esforços de pessoas que eu considerava como sendo meus heróis pessoais, e os mocinhos tinham vencido. Como prova disso, eu só precisava olhar meus melhores amigos, meus vizinhos, meus professores preferidos, vários deles negros. Frederick Douglass, Harriet Tubman, Dr. Charles Drew: na Cidade do Futuro, em 1970, um menino judeu podia olhar para as vidas dessas pessoas e se sentir ligado a elas, se sentir em dívida com essas pessoas – de um modo muito real, ser um descendente dessas pessoas. Porque, se havia um fato que chamava a atenção na história dos negros que aprendi, saída dos lábios de professores negros, como um garoto que cresceu em Columbia, Maryland, era esse: a história dos negros era também a minha história. A música negra era a minha música, a arte negra era a minha arte, e as lutas e os sofrimentos dos heróis negros ocorreram não só pelos outros afroamericanos, mas por mim também, pelo bem de nós todos.

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Quando deixei a Cidade do Futuro para entrar na faculdade em Pittsburgh, comecei a jornada que um dia me levaria a aterrissar na capital do eterno presente norte-americano: Los Angeles. E naquela manhã do veredicto de Simpson, descobri, para minha vergonha, para meu absoluto espanto e para meu horror, que no caminho dessa jornada eu havia, de algum modo, me tornado um racista. Para ser um racista você não precisa chegar ao extremo de estigmatizar, estereotipar ou de discriminar pessoas de outras raças. Tudo que precisa fazer, como descobri naquela manhã de outono em 1995, é se sentir completamente desconectado dessas pessoas. Tudo que você precisa fazer é olhar para essas pessoas com uma espécie de surpresa quase científica, como eu olhava para os afroamericanos que passavam nas ruas de Los Angeles, nos dias após o veredicto de Simpson, e perceber que você vinha passando por elas dessa maneira, por meses, por anos. Eles estiveram aqui o tempo todo, pensando o que pensam hoje, acreditando no que acreditam hoje, e de algum modo você não percebeu.

Essa era a origem da tristeza que senti quando liguei a tevê e vi a Los Angeles negra exultar: a súbita, amarga consciência de meu próprio fracasso, de minha própria cegueira, do apartheid da consciência sob cujas leis eu gradualmente passei a viver, da distância que separava o homem em Los Angeles, em torno do qual 100 mil humanos podiam subitamente se materializar, para o garoto em Columbia, o filho de Tubman e Drew e Rosa Parks.

Uns dois anos se passaram, e minha mulher e eu nos mudamos para East Bay, para uma casa de telhas marrons perto da divisa entre Berkeley e Oakland. Pela primeira vez em anos me vi no centro de outro lugar que podia ser uma utopia, vivendo partes importantes do dia a dia entre pessoas negras. Brokeland — o nome que eu dava para a costura, a junção, a franja cheia de irregularidades ao longo da qual Berkeley e Oakland se perseguem como dois gatos, ombro a ombro, flanco contra flanco, com os rabos se cruzando. Uma terra de seguidores de Fourier tipo faça-você-mesmo e de coletores urbanos de alimentos, praticantes amadores de satori, plantadores de felicidade e de teóricos autodidatas e de místicos cujas visões eram gravadas em suas peles com agulhas e tinta. Um coletivo de heremitas, cuja feroz, às vezes rabugenta conexão com seu próprio desenvolvimento individual só era comparável ao desejo que tinham de companhia, de um tipo de realização coletiva, em um permanente ciclo de comunidade e separatismo que criou uma miríade de monastérios, sinagogas, dojos e escolas de culinária.

Eu tinha a tendência de encontrar os outros eremitas desejosos de convivência principalmente em um tipo de loja pequena e peculiar que abundava em Brokeland. Lojas que se especializam em algum tipo de mercadoria pela qual era fácil se tornar obsessivo – amplificadores estéreos a válvula, digamos, ou suprimentos de vanguarda para tricô ou milk-shakes preto e branco –, lugares com grandes balcões e com cadeiras extras para puxar para conversar por uma hora com o proprietário ou com seus companheiros de solidão. De todas essas tavernas não alcoólicas, desses clubes não oficiais para pessoas esquisitas e inusitadas, os mais puros, acho, eram, e continuam sendo, as lojas de discos usados. Berigan’s, dba Brown, Groove Yard, Dave’s, elas vão e vêm, mas sempre há algumas por perto, apertadas e empoeiradas ou limpas e organizadas, cujos donos e funcionários eram heróis e aficionados condenados a esse destino.

Um dia, não muito tempo depois de me mudar para East Bay, entrei em uma dessas tavernas, pouco antes da linha que separa Oakland de Berkeley. Tinha um sujeito negro grande trabalhando no balcão e um sujeito branco pequeno trazendo caixas de uma sala nos fundos. Os clientes da manhã tinham se organizado no balcão – velhos, novos, negros, brancos e marrons. Judeus e gentios, um dentista, um desempregado – teorizando, opinando, tentando impressionar. Passando tempo juntos.

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Eu não me deixava iludir achando que esses caras estavam todos unidos numa perfeita irmandade. Eles não tinham curado as cicatrizes raciais do país nem inventado uma nação melhor. Ninguém estava pedindo nem dando perdão ou indenizações por causa da escravidão. Eles só estavam conversando fiado, passando o tempo, falando sobre uma coisa que amavam: vinis antigos. Em um pequeno lugar do imenso mundo, por uma breve hora. Logo eles seguiriam seus caminhos diferentes, caminhando em suas vidas descontínuas e unidas, por colinas e planícies, rumo a conjuntos habitacionais e antigas casas no modelo Eichler. Mas naquele momento, pela primeira vez em anos, mexendo nas caixas, inalando o perfume pesado deixado pelo tempo em LPs que estavam embolorando, eu estava onde havia muito tempo queria estar. Eu tinha encontrado um lugar onde pelo menos um resquício do que eu tinha perdido, o sonho em que eu tinha acreditado, a proximidade que havia conhecido em uma época, podia ser encontrada. Eu estava em casa.

Não muito tempo depois, a loja fechou – era da natureza da Utopia fechar — e nunca foi realmente substituída. E então, outra vez, como em As Incríveis Aventuras de Kavalier e Clay, como na Associação Judaica de Polícia, me vi obrigado a, e cheio de vontade de, recriar por meio da ficção, contando uma história e fazendo uso da prosa, a utopia perdida que nunca chegou realmente a acontecer, que nunca realmente conheci, que nunca esqueci desde então e que tenho pedido, e desejado, por toda a minha vida.

Tradução: Rogerio Waldrigues Galindo