Depois de muito tempo, você retorna à ficção. Por quê? E como foi esse processo?
Foi confuso, complicado. Desde o lançamento do meu primeiro romance “Os Estrangeiros do Trem”, em 1997, eu só havia publicado uns poucos contos em algumas revistas. Entre 1999 e 2012, iniciei três romances. Cheguei a concluir dois, mas nenhum me satisfazia, e por isso engavetei-os. A atividade jornalística também contribuiu para eu não escrever. O jornalismo diário é muito absorvente, drenou tudo. E o pouco que eu possuía de literário acabou engolido pelo... Jornalismo Literário! Além disso, houve a conquista do Prêmio Jabuti em 1998. Isso perturbou o processo ainda mais. “Os Estrangeiros do Trem N” foi um dos vencedores na categoria Reportagem. Na época, eu não tinha a consciência que tenho hoje sobre as fronteiras e desfronteiras entre a ficção e a não ficção. Eu era jovem e idealista, e esses assuntos, digamos, conceituais, nem passavam pela minha cabeça. Para mim, tanto fazia se uma história é real ou inventada. Só me importava que fosse uma história instigante e tecnicamente bem composta. E ponto. Ah, por que o meu livro venceu na categoria Reportagem... Não faço ideia. Mas sabe-se que toda premiação literária é idiossincrática (risos) A minha única certeza, hoje, é a de que escrevi um romance; um romance baseado nas amplas pesquisas que fiz em Nova York com imigrantes clandestinos; um romance super realista sobre a condição de estar (ou de sentir-se) desterrado; um romance com um narrador repórter; um romance com uma aparência de reportagem, etc. etc., mas, para mim, um romance, nada mais que um romance. Daí, embarquei numa viagem circunstancial sobre a filosofia e a técnica da narrativa de não ficção, tema que passei a estudar a fundo no mestrado e no doutorado na USP. Então, entre “Os Estrangeiros...” e “A Superfície Sobre Nós” produzi muitos livros – livros com reportagens, livros com perfis, livros com ensaios e mesmo biografias –, mas nada de ficção ou sobre ficção. No momento estou muito contente por ter me dado uma segunda chance. É como se estivesse redescobrindo a beleza da criação. Ainda bem: o jornalismo e a academia são instâncias muito racionais, muito previsíveis. Mas, em termos de linguagem, não fico muito preocupado em romper/manter hibridismos. Qualquer narrativa é uma escolha e, qualquer que seja a escolha, haverá sempre uma linguagem cabível para ela. Particularmente, até gosto da ideia de fazer ficção sobre “a aparência da realidade”.
Sergio Vilas-Boas mergulha no conflito de gerações
“A Superfície Sobre Nós” marca o retorno à ficção do escritor que venceu o Jabuti
Leia a matéria completaDe forma geral, o livro apresenta um “embate” de gerações (Hugo e Jaime), com mudanças profundas na vida de ambos. Sabemos que a tecnologia avançou muito rápido. Você passou por esse processo também, de, de repente, não se perceber mais em um mundo que conhecia bem? Há algo de pessoal aí?
Pois é. A gente passa por isso constantemente. Eu me adaptei muito bem às novas condições sociais e tecnológicas dos últimos 25 anos, ou seja, o período da segunda metade da minha vida. Pulei da máquina de escrever mecânica para as redes sociais, passando por processadores de texto, fax, microcomputador com sistema DOS e depois Windows, e-mail, web, redes sociais e aplicativos mil. No íntimo, porém, me sinto mais outsider do que nunca. O “admirável mundo novo” atual não é nem melhor nem pior do que os já dinossáuricos tempos em que o debate cultural era firme e intenso. Minha geração recebeu uma educação fundamentalmente humanista para em seguida operar em um mundo 100% movido a dinheiro, cada qual cuidando do seu umbigo, cada qual com seu telefone inteligente, cada qual com suas crenças imutáveis, cada qual com seus consumos conscientes, cada qual com suas opiniões formadas sobre tudo, cada qual com seu déficit de atenção, enfim. As nossas experiências já não estão dentro de nós, já não fazem parte da nossa memória profunda. Elas estão em alguma... Nuvem! Essa temática vem me atraindo há muito tempo, e eu queria abordá-la em livro, de uma forma sutil, livre de estereótipos e determinismos. Daí criei Hugo e Jaime, pra ver no que dava. Hugo é o narrador de “A Superfície Sobre Nós”. Ele conta a história no ano de 2011, quando ele está com 28 anos. Começa pelo dia em que ele conheceu o antropólogo Jaime. Isso foi em 2001, no 24º dia de uma greve fracassada, que resultou em demissões em massa. Naquele ano, Hugo estava com 18 anos e Jaime, com 44. Eles não tinham nada a ver um com outro, em termos de personalidade e visão de mundo. O Hugo era imaturo e indeciso, filho único de uma família rica, consumista e indiferente ao que o filho pensava ou dizia. Seus pais detestavam que ele estivesse trabalhando em uma empresa decadente, de um setor decadente (Jaime e Hugo eram colegas num jornal – o Hugo como estagiário na área de TI e o Jaime como tradutor de notícias de agências). Ou seja, em vez de estudar, o Hugo trabalhava, mas para afrontar os pais, não por vontade. Seus pais queriam muito que ele estivesse cursando uma faculdade, mas ele se recusava, negando para si mesmo o fato de ser um rapaz inteligente, perspicaz. Quanto a Jaime, ele na época atravessava um momento complicado: sua mulher, Lara, e seu pai, sr. Olímpio, estavam, ambos, no hospital, passando por cirurgias complexas no mesmo dia, e seus salários estavam atrasados há meses, por causa da crise financeira da empresa. Após uma assembleia sindical conturbada, Hugo e Jaime acabam se vendo a sós em um bar perto da sede do sindicato e ali entabulam a primeira conversa. Nela, o discreto Hugo se dedica a ouvir com extrema atenção, enquanto o supostamente antissocial Jaime se entrega a um relato intenso sobre seus dramas recentes. Hugo percebe que Jaime precisa falar, desabafar, se abrir; percebe que Jaime estava tentando extrair de dentro de si algum entendimento sobre as tantas coisas que deram certo e as outras tantas que deram errado em sua trajetória acidentada. Aquela primeira conversa, então, sela um inusitado relacionamento entre os dois; um relacionamento que não se parece nada com o clássico modelo mentor-discípulo ou algo do tipo. Até porque Jaime não acredita de forma alguma que sua história possa ser inspiradora para quem quer que seja. O que ele quer é instigar o Hugo, que realmente fica fascinado com o que escuta. Mas aí vêm as limitações: o Hugo é meio preguiçoso, não tem força de vontade e muito menos ambição... Agora, aqui, pensando bem, acho que “A Superfície Sobre Nós” na verdade retoma o assunto central de “Os Estrangeiros do Trem N”, que é a experiência com o pertencimento, que inclui não se sentir pertencente a nada. Mas a história contempla outras temáticas, como a importância da memória como organizadora da psique. No livro, as transformações e as oscilações de consciência dos dois protagonistas não ocorrem por concordância ou conformidade. Até porque o senso de liberdade e autonomia do Jaime magnetiza tanto quanto perturba os confortos do protegido Hugo, que não consegue tomar as rédeas de sua vida para finalmente poder ingressar no que ele acredita ser “a vida adulta”. Hugo vê em Jaime a inspiração para uma existência mais desapegada e autônoma, com todas as renúncias e recusas que isto implica.
O romance é polifônico e apresenta interessantes dribles narrativos, como a utilização de colchetes [que às vezes parecem ser algum pensamento inconcluso, ou uma nota de editor]. Há também troca de mensagens de celular e e-mail antes do início de alguns capítulos. Nesse sentido, a literatura vive um momento de redescoberta, as maneiras de comunicação que usamos diariamente estariam de certa forma “invadindo” essa área outrora sagrada?
Os modos de comunicação atuais não apenas invadiram todos os espaços, tempos e memórias. Eles estão dominando a nossa atenção, no bom e no mau sentido. Tento lutar contra isso o tempo todo, mas é uma luta meio inglória. Mesmo eu, que fui educado com princípios gerais como versatilidade, concentração, constância, perseverança, movimento, etc., me pego ansioso por respostas fáceis para questões talvez irrespondíveis. Mesmo eu, que cresci acreditando em processos e construções – tijolo por tijolo mesmo –, me pego doido por pular etapas e “gozar” logo; mesmo eu, antes tão disposto a dar voltas, me pego optando pelo que é mas fácil e indolor; me pego até mesmo subserviente às pregações irrefletidas em prol disso que chamamos, salvadoramente, de A Era Digital. Parece que o passado não tem mais importância, creio. Sim, eu trouxe um pouco dessas inquietações para “A Superfície Sobre Nós”. Por exemplo: o personagem Jaime, que é antropólogo, tem um episódio entalado em sua garganta, um incidente complexo envolvendo o seu doutoramento em uma universidade pública renomada, e que mudara completamente o destino dele. As várias perdas sofridas ao longo de seu processo de autoafirmação desmontaram-no. O tempo passou, mas não os afetos inerentes às situações extremas que o levaram a reduzir ao máximo as suas ambições e se distanciar das facilidades hipertecnológicas. Jaime é tão insider quanto outsider, e arquiteta seu relato para Hugo de maneira premeditada e misteriosa. Hugo, por sua vez, encantado e surpreendido, tenta erguer a história do amigo cinquentão pela via da escrita, linguagem que ele sempre acreditou não dominar, e que não domina mesmo (na narrativa, até criei uns pontos frágeis, de propósito). A superexposição ao imediatismo da imagem o tornou indeciso e muito desatento e preguiçoso. Não por acaso a internet funciona para ele como uma espécie de diversão compulsiva. Jaime não. Para Jaime, liberdade é ser capaz de comandar o próprio destino. Ele acaba induzindo Hugo a refletir sobre o fato de hoje termos trilhões de opções que praticamente nos impedem de optar, ou de nos sentirmos seguros quanto a termos escolhido o que era verdadeiramente melhor para nós. Você pode buscar, clicar e encontrar o que precisa em questão de segundos, mas, enquanto você se aferra aos seus aplicativos de comunicação, você está selando a sua condição de refém do consumismo debilitante. É exatamente essa ideia assombrosa que acaba mobilizando o Hugo. Enfim, o romance levanta muitas perguntas. Algumas delas: Há uma linha separando a superfície da profundidade? Quão capazes somos de compreender a vida de uma pessoa? A velocidade do mundo atual nos deixa mais desatentos, desmemoriados e judicativos ou seria o contrário disso? Já os colchetes, parênteses, e-mails, chats, etc. a que você se refere, eu os inseri com o intuito de “dessacralizar” a narrativa clássica; e para sugerir que vivemos numa salada de linguagens dispersivas (incluída aí, claro, a linguagem pseudojornalística, que, aliás, também invadiu tudo). O fato é que profundidade nada tem a ver com máquinas, aplicativos, quantidades, volumes, sobreposições, etc. Profundidade é conhecimento, e isto é uma conquista bem mais complicada.
Hugo parece ser um sujeito de bom senso, interessado, apesar de reações típicas de quem tem vinte e poucos anos. É possível confiar o futuro da humanidade a essa nova geração? Do que ela é feita, essencialmente?
Procurei evitar com todas as forças a ideia de que Hugo e Jaime funcionassem no romance como esquemáticos representantes de suas respectivas épocas. Ao contrário. O que move a história é exatamente a singularidade de ambos, como indivíduos mesmo. O Hugo é sensato, sim, mas inseguro; bem formado, mas convencional; consciente de suas possibilidades, mas sem ambição; sociável, mas desatento; aberto a filosofias, mas inoperante. Essas aparentes contradições – que, aliás, podem integrar qualquer ser humano –, não são um problema em si, no caso. Ao topar o desafio de escrever sobre o amigo (no fundo, Hugo estava escrevendo sobre si mesmo, por contraste), Hugo começa a superar várias das limitações impostas pela educação que ele diz ter recebido: uma educação liberal, mas voltada para a adoração, não para a contestação, do status quo. Jaime, por outro lado, trabalhar a vida toda com o único intuito de se descobrir, de se testar. Essa oposição de valores é um dos aspectos que torna interessante a relação dos dois. Hugo descobre, por fim, que é capaz, sim, de contemplar a experiência alheia, ainda que não a compreenda bem. Porém, sabe-se que compreender uma pessoa não significa, necessariamente, concordar com o que ela pensa ou com o que ela faz. Hugo discorda de algumas atitudes de Jaime, mas, em vez de aplacar essas atitudes por um ponto de vista judicativo, ele as coloca em perspectiva. Até pede ajuda à namorada (Tábita, apelido Tabs, que é mais jovem ainda que ele). A narração dá a entender que é a Tabs quem faz as intervenções entre colchetes, bom, mas não quero fugir da sua pergunta sobre se eu “confiaria o futuro da humanidade a essa nova geração”. Olha, isso nunca será posto em discussão ou votação, assim como não foi posto em votação/discussão se a minha geração, quando bem jovem, tinha ou não tinha condições de assumir o futuro da humanidade. Se você pudesse voltar no tempo, você confiaria o futuro da humanidade à minha geração? De jeito nenhum, né? Então, a minha percepção da juventude de hoje se baseia na experiência de sala de aula, e é a seguinte: nos jovens de hoje, o ideal de movimento tem de conviver com o ideal de inércia. Um paradoxo, a meu ver, interessantíssimo.
Para o final do livro, há um parágrafo muito bonito, que fala sobre “a solidão real”: “A solidão real não tem nada a ver com a eventual falta de alguém para conversar (...) Solidão mesmo é não ter com quem contar.” A nova geração está mais individualista, sabemos. Está mais solitária também, apesar de todas as redes sociais?
Se é mais solitária... Eu não saberia dizer. Mas percebo que tudo se baseia em muitas postagens, mas quase nenhuma experiência direta (não mediada). Parecem movidos por uma noção radical de felicidade. No entanto, se pensarmos bem, a felicidade é um sentimento mais idealizado que concreto. Normalmente, acreditamos na felicidade como algo externo a nós, ou que depende de fatores externos (sociais, familiares, midiáticos, etc.) para se concretizar. Estamos muito mais voltados para o atendimento às expectativas dos outros do que para a descoberta de nós mesmos e do nosso propósito no mundo. A educação ocidental se constituiu assim. Nesse sentido, o Jaime oferece uma perspectiva interessante. Para ele, a felicidade é uma invenção que a gente inventa e reinventa conforme as circunstâncias e conveniências do momento. Há um passagem no livro que talvez nos ajude a entender o que estou tentando dizer. Mais ou menos assim: “Não importa o que você de fato faz ou fez, mas sim o que você sente a respeito do que faz ou fez”.
Você é um biógrafo por natureza. Tem livros teóricos sobre o assunto e algumas biografias publicadas. Dedicou grande parte da vida ao jornalismo literário e produziu muitos perfis. No entanto, estamos aqui falando sobre ficção. Há que se comportar de maneira diferente para tratar destes dois assuntos ou, hoje, essas fronteiras estão mais perto?
Não me considero biógrafo, e muito menos “biógrafo por natureza”. Uau, nem pensar. Ao contrário, sinto-me o antibiógrafo. Vejo a forma biográfica moderna – aquela organização colossal de dados sobre a vida de um morto – como algo nada inspirador. Também me causa riso essa noção tão em voga de que a biografia de alguém pode ser comprada com “definitiva” e “totalmente independente”. Dou gargalhadas quando ouço/leio isto. Imagine escrever algo já pré-determinado para ser “definitivo”! Que saco (risos). Mas você tem razão quanto ao seguinte: fiz muitos perfis (compactos ou extensos), sim, e acho o gênero perfil convidativo exatamente por ele estar livre de certezas, presunções e engessamentos formais. Dependendo de como for construído, um perfil pode ser tão duradouro quanto temporário. Acho que transito com desenvoltura pelas fronteiras da ficção e da não ficção por uma razão muito simples: conheço os limites e as possibilidades de cada uma, mas não fico filosofando a respeito disso enquanto estou em ação. Não acho que ficção e não ficção sejam elementos opostos. A batalha é outra. A grande luta de quem escreve histórias (reais ou inventadas, seja lá o que isto queira dizer) é evitar enquadramentos teóricos.
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