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Clarice Lispector: “Ela é ainda mais importante do que aparentava,” | Divulgação
Clarice Lispector: “Ela é ainda mais importante do que aparentava,”| Foto: Divulgação

Clarice Lispector se tornou nas últimas décadas alvo de um culto pseudoliterário, que celebra sua aura de mulher liberada, “bruxa”, e, claro, grande escritora, mas com a publicação de frases nas redes sociais que nem sempre são dela. Pois agora quem tem interesse real em sua escrita poderá ler simplesmente todos os contos da imigrante ucraniana, algo nunca reunido num único tomo. “Todos os Contos”, a obra de quase 700 páginas que está nas livrarias desde o início de maio, e seu organizador, Benjamin Moser, vêm à Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que ocorre entre 29 de junho e 3 de julho, falar sobre a publicação, que saiu antes em inglês e teve a tradução premiada nos EUA.

Brasilianista fervoroso, o pesquisador, autor da biografia “Clarice,” (2009) e grande divulgador da escritora no exterior, lança também “Auto-imperialismo”, livro de ensaios em que lamenta a forma como o Brasil, em sua opinião, se odeia e se destrói.

Moser falou por telefone à Gazeta do Povo sobre os dois livros e a importância de Clarice Lispector que, para ele, só aumenta à medida que ele continua sua pesquisa.

Benjamin Moser se considera uma das pessoas que mais conhecem Clarice Lispector.Divulgação
Qual sua expectativa para a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip)?

Não vejo a hora! São quase três anos que não volto ao Brasil. Às vezes sinto que sou brasileiro, ou pelo menos não é um território alheio para mim. Tenho um monte de amigos e sempre senti muita afinidade aí. Na Flip, serão duas mesas, mas não posso contar tudo. A revelação que trago é sobre os contos da Clarice. Quem estudou ela nunca leu os contos dessa forma. Você vê toda a vida de uma artista se desenvolvendo em um livro, e até eu, que sou uma das pessoas que mais conhecem a Clarice, nunca tinha enxergado tamanha riqueza nessa obra.

“É como ver uma flor se abrir. É a revelação de um grande gênio da literatura moderna e uma das verdadeiras glórias do Brasil.”

Benjamin Moserpesquisador, sobre o desenvolvimento da escrita de Clarice Lispector.
Fale do outro livro que o senhor está lançando, por favor.

Estou lançando “Auto-imperialismo”, um livro curto de ensaios sobre várias cidades do Brasil e por que o Brasil ficou tão feio. Ele se atacou em sua história, natureza, população e urbanística – com uma arquitetura opressiva. É uma coisa relevante para esse momento social e político. O Brasil é um país que se invade, se imperializa – essa é uma imagem que descobri enquanto fazia outras coisas por aí. O Brasil ficou os últimos dez anos falando que era a melhor coisa do mundo... mas na verdade se odeia, como uma pessoa insegura, que é a que mais insiste em ter a melhor mesa no restaurante. Países também têm personalidade. Quanto mais o Brasil vendia a imagem de que estava bombando, mais desagradável ficava para mim. Agora estou mais interessado no país porque está mais incerto, precisando se reinventar.

LIVRO

Todos os Contos

Clarice Lispector. Rocco, 656 págs., R$55.

Como é a história do conto “Carta para Hermengrado” que o senhor descobriu em um arquivo?

Havia muita coisa em pedaços ou edições antigas e arquivos. Foi um trabalho de muitos anos que eu tinha feito durante a pesquisa para a biografia dela. Mas foi uma alegria topar com uma coisa que ninguém conhecia. Esse conto tem cinco partes, mas duas ou três delas eu só descobri depois de publicar em inglês.

Na versão em português deu tempo de sair completo?

Sim, é inédito.

No prefácio o senhor diz que é inédito uma mulher ter escrito com constância ao longo da vida. Há outros exemplos no mundo?

Quando descobri isso, fiquei muito surpreendido. Achei que já tinha falado tudo: que ela é a melhor escritora do Brasil, o autor judaico mais importante desde Kafka, uma das mais importantes da literatura moderna. Mas não tinha reparado na importância histórica dela: foi a primeira mulher a escrever do início ao fim da vida sem se matar ou desistir. A geração dela não teve muita chance de se desenvolver, e muitas escritoras talentosas pararam. E não estou falando de um lugar desconhecido como o Paquistão: nunca ninguém conseguiu fazer isso na classe média de nenhum país. Eu fico pensando se estou exagerando a importância dela... mas acabo vendo que ela é ainda mais importante do que aparentava, até para mim.

Os contos estão em ordem cronológica? Como percorrem as mudança dela de escrita e visão de mundo?

Começa com 19 anos, ainda uma estudante no Rio, e chega até as últimas coisas que escreveu. Há contos iniciais que pouca gente conhece, mas revelam já a garota genial e uma personalidade que vai se desenvolvendo ao longo de quase 700 páginas. É como ver uma flor se abrir. É a revelação de um grande gênio da literatura moderna e uma das verdadeiras glórias do Brasil. Ela desabrocha de forma interessante – porque vai embora do Brasil, ter uma vida muito careta, de classe média alta, dona de casa. Mas fora do Brasil ela fica totalmente livre. Em algum lugar ela diz: “Liberdade é pouco”. Porque é muito venenoso ter muito tempo para não fazer nada em um país onde não se conhece ninguém. Há mulheres esmagadas pelo tédio, falta de assunto, bebida. E ela não assumiu a solidão, usou a liberdade para criar muitos desses contos que estão no livro, como os de “Laços de família”. Há circunstâncias que são tristes, mas, por outro lado, são uma liberação – como não ter que lidar com o que a vizinhança acha de você.

É o que o senhor chama, no prefácio, de “alienação cultural produtiva”?

Sim, é penoso, mas por outro lado pode ser bom. Eu curto essa alienação, como americano vivendo entre a Holanda e a França. Tenho mais liberdade longe da minha terra.

“Ela [Clarice] vai embora do Brasil, ter uma vida muito careta, de classe média alta, dona de casa. Mas fora do Brasil ela fica totalmente livre.”

TRECHO

Veja como Clarice soa em inglês:

Before Armando got home from work the house had better be tidy and she already in her brown dress so she could tend to her husband while he got dressed, and then they´d leave calmly, arm in arm like the old days. How long since they had done that?

(Da tradução de Katrina Dodson para “Imitação da Rosa”)

Fale da busca linguística dela, por favor, e da dificuldade de tradução.

É o grande problema da Clarice, inclusive em português. Todo mundo a lê de maneira diferente, até quem fala muito bem o português, brasileiros mesmo, não estão sempre de acordo com o significado de tal frase ou palavra. Então trazer isso para outro idioma significa ter muita variedade nas vozes. Nas traduções de Clarice que coordenei meu papel era fazer todos falarem mais ou menos da mesma forma. Eu reviso palavra por palavra. Tenho uma ideia de como a Clarice deve soar em inglês. Sou tipo um condutor da orquestra. Mas a voz da Clarice tem que ser mais forte.

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