Na madrugada de 26 de abril de 1986, uma série de explosões deu origem a um incêndio em um dos reatores da usina de Chernobyl, na Ucrânia. Era o início do maior acidente nuclear de todos os tempos, responsável por causar um número incalculável de mortes, multiplicar em 78 vezes os casos de câncer na região e espalhar radiação por diferentes continentes. No dia seguinte, sem ter ideia da gravidade do ocorrido, dezenas de crianças das redondezas percorriam quilômetros a pé ou de bicicleta em meio à poeira radioativa para ver a fumaça que ainda saía do local. Era azul e brilhava.
Cenas como a descrita acima fazem parte de “Vozes de Tchernóbil”, livro lançado originalmente em 1997, mas que só hoje chega às livrarias brasileiras, exatamente 30 anos após o trágico episódio. A edição brasileira é lançada meses após a autora do volume, a jornalista bielorrussa Svetlana Aleksiévitch, ter alcançado reconhecimento mundial, laureada com o Nobel de Literatura em outubro passado. A escritora também virá em breve ao Brasil para uma participação na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), que ocorre entre 29 de junho e 3 de julho.
Qualificado pela Academia Sueca, responsável pela escolha do Nobel, como uma “obra polifônica, memorial do sofrimento e da coragem em nossa época”, “Vozes de Tchernóbil” é o mais elogiado livro da autora, realizado a partir de uma pesquisa de 10 anos na qual conversou com mais de 500 entrevistados. No extenso rol de fontes de Svetlana, figuram políticos, médicos e físicos, mas são os relatos de quem vivenciou de perto o desastre radioativo que constituem o cerne do trabalho. Entre eles, estão bombeiros, camponeses e liquidadores (civis e militares encarregados da limpeza da área), bem como seus familiares.
Os depoimentos se sucedem uns aos outros, sem que a autora os contextualize ou emita qualquer juízo, como um documentário que abre mão do narrador. O arranjo é muito bem executado, evitando redundâncias e fazendo com que o leitor compreenda a sequência dos fatos ali expostos sem qualquer dificuldade.
Crônica da era soviética
O acerto de Svetlana na composição do livro, no entanto, não significa que ofereça uma leitura fácil. Ao contrário, o início da narrativa é uma verdadeira prova de fogo para quem pretende encarar suas 384 páginas. O primeiro relato é da viúva de um dos bombeiros convocados para apagar o fogo do reator – sem saber para onde estava indo e sem usar qualquer roupa especial. Grávida, ela burla a burocracia soviética para ficar próxima do marido nos últimos 14 dias de vida deste. Descrições do corpo que se desfazia aos poucos sobre o leito não são omitidas, expondo o leitor, de modo quase sádico, a vísceras, secreções e muita dor.
Não é menos chocante a descrição do modo como as autoridades trataram o ocorrido, buscando escondê-lo da comunidade internacional e da população. Nem mesmo os próprios soldados convocados a atuar na zona contaminada podiam acessar os exames que mediam diariamente a radiação de seus corpos, mesmo que o dado, mais tarde, pudesse ser importante para ajudar no tratamento de doenças decorrentes deste período de suas vidas.
Com depoimentos profundamente humanos, mas que não deixam de lado o modo esquivo com que o Estado tratou o episódio, “Vozes de Tchernóbil” constitui um poderoso documento sobre a catástrofe nuclear, mas também uma crônica sobre o regime soviético em queda.
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