Espirituoso, Schama se refere aos pedaços de cerâmica e fragmentos de história como “tuítes em hebraico”.| Foto: Divulgação

“A História dos Judeus”, do britânico Simon Schama, prova que é possível dar conta de uma história monumental usando para isso apenas fragmentos, rastros, ínfimos sinais de uma trajetória que, ademais, confunde-se com a própria “criação do mundo”, tal como aceito pela tradição religiosa ocidental. Não é banal a tarefa de reconstituir a verdadeira história dos judeus quando esta encontra-se tão impregnada da narrativa bíblica.

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Sem negar a importância formativa dos mitos do Gênesis e do Êxodo, Schama procura entender o desenvolvimento dos judeus e do judaísmo por meio das vozes de sua gente comum, registrada nos mais diversos documentos – desde pedaços de cerâmica e fragmentos, que o historiador, em sua graciosa narrativa, qualifica de “tuítes em hebraico”, até mosaicos em sinagogas e estudos sobre corpos celestes para orientar navegantes no século 16. São esses anônimos que desde o século 10.º a.C. vão construir a face real do judaísmo – muito distintiva que, como mostra Schama, se mantém mais ou menos inalterada até hoje.

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E os judeus retratados pelo historiador, conforme a ideia central do livro, não se coadunam com a imagem que seus detratores costumam lhes atribuir. Não são apenas ortodoxos guardiães das leis de Deus, encerrados em guetos e refratários às culturas ao redor, e sim, em sua maioria, habitantes plenamente dispostos a assimilar o acento local e a aceitar como suas as tradições que os cercam, mesmo que isso signifique, aos olhos dos fundamentalistas, adaptar o judaísmo a uma realidade mais mundana e deixar-se contaminar por costumes diversos.

“A História dos Judeus”, de Simon Schama, tem tradução de Donaldson M. Garschagen e sai pela Companhia das Letras, com 560 páginas e custando R$ 69,90. 

Schama resgata, por exemplo, o papel do Egito na vida dos judeus. É uma tarefa e tanto, já que o Egito figura como a terra que os submeteu à escravidão. No entanto, há documentos que indicam que a sociedade judaica de Elefantina, no século 5.º a.C., absorveu práticas egípcias e flexibilizou seu judaísmo. Eram o que hoje se poderia chamar de judeus assimilados. É claro que os judeus fundamentalistas que permaneceram em Jerusalém, ante a sensação de sítio permanente e preocupados com o avanço do paganismo, tornaram-se duros críticos da heterodoxia dos correligionários egípcios.

O mesmo aconteceu com os judeus que adotaram a cultura helênica. Alguns chegaram ao extremo de tentar reconstituir o prepúcio e assim reverter a circuncisão, principal símbolo da aliança judaica com Deus, porque o pênis com a glande à mostra era motivo de chacota dos gregos durante as atividades físicas – nas quais os homens ficavam completamente nus. É evidente que tal comportamento escandalizou os ortodoxos. Tal antagonismo entre judeus religiosos e seculares atravessou os séculos e perdura até hoje, sem sinais de arrefecimento.

É essa diversidade inconciliável, é essa questão permanente sobre “quem é judeu”, que garante o vigor da cultura judaica mesmo depois da destruição do templo (duas vezes) e das inúmeras perseguições e ameaças ao longo dos séculos. O elemento que a tudo une, mesmo que sejam polos tão opostos, é a palavra. Mas não a palavra estática, definitiva, indiscutível, pois, como escreve Schama, “a leitura judaica se recusa a satisfazer-se com o que está no livro”. A história dos judeus, portanto, é a história do questionamento – e nem mesmo as leis de Deus escapam desse ímpeto de interpretação crítica do mundo.

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