Em 1887, um grupo de 150 escravos fugia de Capivari para Santos. Fugas de escravos não eram novidade no Brasil, que havia três séculos vivia de explorar a mão de obra negra.
A novidade é que, àquela altura, os fugidos tinham apoio de grande parte da população – e também de gente com peso político. Na opinião da socióloga Angela Alonso, isso se deve em grande parte ao trabalho dos abolicionistas, um grupo de início pequeno mas que, ao longo dos anos, conseguiu minar a legitimidade da escravidão. Abolicionistas que, mesmo à beira da vitória final, precisavam conviver com escravistas violentos: os escravos em fuga foram massacrados.
“Flores, Votos e Balas” é a história desse trabalho. A história, segundo a autora, do primeiro movimento social brasileiro. Uma das teses do livro é justamente essa: a de que, ao contrário do que diz o mito, a sociedade brasileira não era inerte e nem ficava impassível sob a tutela de governos que tudo podiam.
SERVIÇO
O movimento abolicionista brasileiro (1868-88). Angela Alonso. Companhia das Letras, 568 pp., R$ 66,90.
O abolicionismo, especialmente nos 20 anos que precederam a Lei Áurea, é um daqueles momentos positivos de ação política em que a sociedade brasileira conseguiu bons resultados ao trabalhar em nome de uma boa causa.
Para Angela Alonso, as duas interpretações mais difundidas da libertação dos escravos no país são insuficientes se não se levar em conta o terceiro pilar. As mudanças econômicas e sociais do país foram importantes. A regente teve seu papel.
Mas sem o abolicionismo, sem a pressão social, as coisas podiam demorar bem mais a sair da inércia. Provas disso não faltam no livro da socióloga, que, não por acaso, se especializou no estudo de movimentos sociais.
O primeiro momento, quando se aprova a Lei do Ventre Livre, encontra um abolicionismo “de elite”, diz Angela, em operação no Brasil.
“À perda de sustentação política somou-se a desistência difusa do estamento senhorial. Multiplicavam-se o que Antonio Bento chamou de abolicionistas de escudo, pessoas gradas, de brasão nobiliárquico, que nunca frequentaram conferência abolicionista e que se puseram a libertar escravos em jantares, serões, aniversários. Todos ‘profetas après coup, post facto, depois do gato morto’, dedicados a tirar prestígio social da perda econômica inevitável, como o personagem emblema do adesismo que Machado de Assis criou em 1888. O proprietário de Pancrácio se regia pelo princípio dos ‘grandes e verdadeiramente políticos’, que ‘não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários’.”
no Parlamento. Os conservadores argumentam que, moralmente, a escravidão é errada, mas que o país não pode viver sem ela. Pedem mais 50 anos. O trabalho dos abolicionistas é não deixar que o país conviva por tanto tempo com a escravidão.
Angela reconstrói o perfil dos líderes do movimento. Sai-se do livro empolgado com o caráter de André Rebouças, com a paixão de José do Patrocínio, com a diplomacia de Joaquim Nabuco. E a seguir vê-se como as ideias deles ganharam corpo e conquistaram uma nação em que antes o escravismo era tido como natural e imutável. Nem era natural, nem era imutável.
No fim do livro, o frenesi popular com a libertação dos negros, narrado por um apaixonado Machado de Assis, mulato que defendeu os abolicionistas (ao contrário do escravista José de Alencar) dá uma dose de esperança ao leitor sobre o país.
Se até a escravidão, motor do país por três século e meio, pôde chegar ao fim em nome de princípios morais, muito mais pode ser feito. “A política”, conclui Angela Alonso, “é mesmo a arte do possível e, às vezes, do improvável”.