O plano era usar um vale-cultura para consumir bens e serviços culturais durante um passeio pela Rua XV de Novembro e assim avaliar o que sobrou da velha XV, nossa “rua principal”, símbolo da cidade para o bem ou para o mal.
Para percorrê-la, recortei um segmento menor de sua reta: a “XV cultural”, começando na esquina com a Rua Ubaldino do Amaral e seguindo até a Praça Osório.
No início da descida, à direita, fico tentado a entrar no Centro de Línguas e Interculturalidade (Celin). Há cursos pagos e gratuitos no Celin, mas infelizmente aulas de idiomas não estão na lei do vale-cultura. Cursos de artes, audiovisual, circo, dança, fotografia, música, teatro e literatura, sim.
Sigo o trecho, até o Museu Guido Viaro, que abriga as telas do pintor italiano em um casarão de 1929. Há ainda uma sala dedicada à literatura de Dalton Trevisan e um auditório para concertos musicais para 40 pessoas, onde funciona aos sábados à tarde o cineclube Espoleta.
“Somos um núcleo de manifestações diversas de cultura na Rua XV”, me disse Guido Viaro, neto do pintor e gestor do museu. Não foi lá que usei o cartão porque é tudo gratuito (alguns concertos cobram simbólicos R$ 10).
No outro lado da rua, está o elegante Teatro da Reitoria, da década de 1950 com capacidade para quase 700 pessoas, mas que tem sido mais usado para formaturas e eventos e não aderiu ao vale-cultura.
440
Criado em 2013, o Vale-Cultura atingiu até hoje 440 mil pessoas, menos de 2% da meta de 40 milhões de trabalhadores que o Ministério da Cultura (MinC) visa atingir até 2020.
O que também ainda não aconteceu nos teatros Guaíra, Guairinha e o Glauco Flores de Sá Brito, uma quadra adiante.
De acordo a Secretaria de Estado de Cultura (Seec), outros espaços culturais estaduais como o MON já aderiram, mas, nos teatros, a gestão da bilheteria foi cedida à empresa Disk Ingressos. A Seec informa que já está negociando a adesão ao programa federal para a temporada do ano que vem.
Se o Guaíra aceitasse, por exemplo, seria preciso acumular quatro meses do benefício para comprar um ingresso no segundo balcão do midas do pop nacional Lulu Santos.
Na mesma quadra existiam até 2009 uma loja das Livrarias Curitiba e o Cine Luz, último cinema da Rua XV. Eu estava presente à última sessão, a das 19 horas do dia 11 de novembro, que exibiu o filme romeno “Como Comemorei o Fim do Mundo” e vi quando a luz apagou.
No prédio histórico da UFPR, no primeiro andar, há o Museu de Arte da UFPR (MUSA) criado em 2002. Simpaticíssimo. Gratuito. Vale a visita.
Saio da via calma (um dia, todas serão) e entro no Calçadão da XV. Orgulho do urbanismo curitibano.
1,2 mil
Pouco mais de 1.200 empresas aderiram ao programa no país inteiro. As empresas podem agregar este valor ao salário dos trabalhadores sem encargos sociais e trabalhistas.
Logo na primeira quadra, entro na loja que vende souvenirs locais a turistas. Artesanato? Sim, consta da lista do vale-cultura. A loja, porém ainda não foi cadastrada, a atendente não reconhece o plástico verde-amarelo. Uma pena, pois eu estava de olho no descascador de pinhão.
Continuo meu footing, como os curitibanos de antanho chamavam a arte de flanar pela Rua XV, costume assentado desde o tempo de Manoel Ribas e que a construção do calçadão veio legitimar.
Caminho entre lojas de calçados e roupas a preços populares, casas de empréstimo a pensionistas, lanchonetes de todas as cepas, pregoeiros disputando no grito clientes para comer em buffet com “duas opções de carne”. Há duas décadas atrás, o comércio era outro: joalherias, confeitarias, bancos.
Há ainda bons cafés na Rua XV, mas pensando em bens culturais é fácil notar a mudança do perfil da rua. Alguns locais só existem na memória.
“Ali era o Cine Groff. Ali, a livraria Ghignone, mais adiante, o Cine Ritz”, penso. E outros tantos que se perderam no tempo.
1%
Empresas tributadas com base no lucro real podem deduzir até 1% do imposto de renda se aderirem ao Vale Cultura. Uma adesão de 100% geraria R$ 20 milhões anuais À indústria.
Mas sem saudosismos, por favor. Pouco fizemos – sociedade ou, muito menos, gestão pública – para defendê-los. Existe agora outra cidade. E a XV ainda é seu melhor retrato.
“A renovação da rua acompanha o processo de diversificação da população da cidade”, explica o pesquisador Manoel de Souza Neto que mantém no Edifício Tijucas, o acervo do Museu do Som Independente, uma iniciativa privada de resgate da memória fonográfica de Curitiba.
“A XV é hoje um território mais livre contra o conservadorismo do passado. Esta ruptura é interessante, dá visibilidade a diversidade cultural. Curitiba foi fechada demais por muito tempo e está se transformando numa cidade aberta”, avalia.
O passeio entre a esquina da Monsenhor Celso até a Ébano Pereira comprova a tese. Um uruguaio manipulava um Carlos Gardel de papel machê. Um trio de jovens argentinos tocavam jazz. Um menino do Sítio Cercado, heavy metal no violino. Mulheres de origem indígena vendem cestarias... Surge o decano Ademir Plá com seu violão e suas paçocas, homens haitianos conversam e sorriem com suas camisas impecáveis. Os cabeludos do Grupo Epopeia vendendo seus peixes (“Você curte poesia?”).
Pesquisadores da ciência social e críticos da ideia de “Curitiba cidade-modelo” – como Nélson do Rosário e Denisson de Oliveira – afirmam que o mesmo grupo político que criou o Calçadão da XV foi responsável por transformá-lo no que é hoje ao permitir que mais de dez shopping centers se instalassem na região central.
Referência
Vale Cultura é um cartão magnético com valor de R$ 50 mensais que empregadores cadastrados no programa do governo federal podem conceder a seus empregados que ganham até cinco salários mínimos e que serve para comprar produtos ou serviços culturais em todo o Brasil.
Números do Vale-Cultura.
A enorme migração do público consumidor de cultura para os novos e seguros templos de compras asfixiou o comércio tradicional do centro.
Penso nisso quando entro nas Livrarias Curitiba da Boca Maldita, único local na rua (“não é na rua XV”, me dirão os puristas “é na avenida Luiz Xavier”) que finalmente aceita o vale-cultura.
Segundo o assessor de comunicação, João Alécio Mem, a livraria ainda se mantém “no coração da cidade, pois o ponto é muito bem localizado e permite oferecer algumas vantagens que os shoppings oferecem como horário estendido”.
Segundo ele, o perfil do cliente que usa o vale-cultura casa bem com a proposta da loja central. “É um cliente que em geral não tinha o hábito de frequentar livrarias. Para a empresa, é uma porta aberta para novos clientes”, explica.
Discos, livros em promoção, presentes de amigo secreto e livros escolares estão entre os itens preferidos dos usuários do vale-cultura. Em 2015, cerca de 167 mil clientes usaram o benefício na Livraria.
Compro o romance “O Professor” (Record), de Cristovão Tezza por R$ 35. Me sobram quinze pratas que poderiam comprar um sanduíche de pernil no Bar Mignon ou dois madrilenos da Confeitaria das Famílias. Eles ainda não são considerados bens culturais, mas deveriam.
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