Burle Marx percebeu na Europa o fascínio e a beleza das plantas brasileiras| Foto: Divulgação
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Você certamente já fez caminhadas no Parque São Lourenço ou no Barigüi, conhece o Centro Cívico de Curitiba e, mesmo que não tenha viajado ao Rio de Ja­­neiro, já viu o Parque do Fla­men­­go ao menos em alguma ce­­na de novela.

Você pode nunca ter ouvido falar no nome Roberto Burle Marx (1909-1994), mas pisou em alguma de suas mais de mil obras paisagísticas espalhadas em inúmeras cidades do Brasil e do mundo. Talvez até more em um edifício com jardins projetados por ele.

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Foi principalmente com o paisagismo que esse "artista total" que, no dia 4 deste mês, completaria cem anos se estivesse vivo, ajudaria a consolidar o ideário modernista no Brasil. Mas uma visita à exposição Ro­­ber­­­to Burle Marx 100 anos: a Per­manência do Instável, em cartaz no Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) até 13 de setembro, revela seus outros outros atributos: também foi pintor, tapeceiro, gravador, escultor, designer de joias, ambientalista, botânico e até cantor lírico e refinado chef cozinha.

Antes de seguir para São Pau­lo, a exposição esteve em cartaz por quatro meses no Paço Im­­perial do Rio de Janeiro, e foi visitada por mais de 185 mil pessoas – entre elas, pessoas que conheceram o artista pessoalmente e, mesmo assim, se surpreenderam com o que viram. Uma delas é o poeta Ferreira Gullar. "Acho que não é inconfidência minha dizer isso. Ele me ligou depois de ver a exposição e disse que estava fascinado com a qualidade da pintura de Burle Marx", conta o arquiteto Lauro Cavalcante, cu­­rador da mostra e organizador, junto com Farès el-Dahdah, do livro que leva o mesmo nome do evento.

A surpresa do poeta é natural, afinal, a fama de paisagista relegou a pintura de Burle Marx a um segundo plano. "Sua importância como paisagista foi maior porque ele cria uma linguagem moderna para jardins ao transplantar noções estéticas de artes plásticas de vanguarda a um grande conhecimento de botânica", diz o arquiteto.

O gosto pela música e as plantas veio de berço. A mãe, Cecília Burle, pernambucana de origem francesa, era cantora e pianista. O pai, o alemão Wilhelm Marx, apesar de comerciante de couros, cultivava nos filhos o amor pela música erudita e a literatura europeia. Burle Marx passava horas com a mãe cuidando do jardim do casarão onde moravam, no bairro carioca do Leme, e, aos 8 anos, já tinha sua própria coleção de plantas.

Ali, no jardim, fez amizade com seu vizinho adolescente e futuro arquiteto Lucio Costa. "Roberto dizia que o Lucio foi o grande incentivador da vida dele, o primeiro que estimulou seu trabalho como jardinista, quando via os quintais que ele fa­­­zia, ainda criança, com plantas im­­portadas. Tanto que o primeiro tra­­balho dele foi com o Lucio, uma casa em Copacabana hoje destruída", lembra o arquiteto paisagista Haruyoshi Ono, ex-estagiário, depois sócio do paisagista e atual diretor do escritório Burle Marx e Cia. Ltda.

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Aos 19 anos, de 1928 a 1929, Burle Marx muda-se com a família para Berlim para tratar um problema nos olhos. Ali, à maneira de outros artistas modernistas brasileiros, como Tarsila do Ama­­ral, descobre seu país a partir do olhar estrangeiro. Ao visitar o Jardim Botânico de Dahlem, surpreende-se com uma grande quantidade de plantas brasileiras usadas com objetivos paisagísticos. Compreende então que sua inspiração deveria se basear, sobretudo, nas espécies autóctones, ou seja, originárias de seu próprio país – exatamente ao con­­trário do que faziam a elite brasileira ao privilegiar a importação desmedida, inclusive, de plantas para os jardins.

Nasce, a partir dali, um trabalho paisagístico pioneiro e que ajudaria a consolidar o ideário modernista no Brasil – calcado em uma preocupação de reconhecer elementos naturais que possibilitem estabelecer uma cultura genuinamente brasileira. O uso exclusivo de plantas brasileiras era sustentado por um profundo senso de botânica e ecologia – apurado em seu "laboratório", o Sítio Santo Antônio da Bica, no município de Barra de Guaratiba, a 55 quilômetros do Rio de Janeiro, que adquiriu em 1949. Grande repositário de suas pinturas, o sítio, aberto à visitação, ainda mantém a gigantesca coleção de plantas que o paisagista formou a partir de suas expedições ao re­­dor do país, e os jardins próximos à casa onde morou.

O jovem Roberto Burle Marx defendia, desde os anos 30, o paisagismo como arte em um período em que as fronteiras entre diletantismo e atividade profissional ainda eram indefinidas. Aliás, um dos desdobramentos do trabalho de Burle Marx foi ter contribuído para consolidar o paisagismo como atividade sistemática e regular no Brasil. "Pela primeira vez no cenário do paisagismo internacional, tivemos um brasileiro citado nos livros, reconhecido. Até então o país estava à margem, éramos só, que ironia!, fornecedores de plantas", diz o arquiteto Guilherme Mazza Dourado, autor do livro Modernidade Verde – Jardins de Burle Marx.

Foi inspirado na arte de seu tempo que Burle Marx criou uma sintaxe moderna para jardins, pautada no jogo contrastante de massas vegetais de cores únicas e vibrantes. "Ecologia e estética se complementam", explica Ono. "O paisagista deve sempre pensar ecologicamente, utilizando plantas autóctones que se harmonizem para criar um espaço em que as pessoas se sintam bem."

Burle Marx buscou o diálogo entre os edifícios, a paisagem e o tratamento paisagístico do entorno. "Esta conversa formal que se estabeleceu é um dos diferenciais do paisagismo brasileiro", explica Dourado. Em um amplo balanço da arquitetura moderna no Brasil, o crítico de arte Mário Pedrosa escreveu que o paisagista "foi o primeiro a trazer à nova arquitetura uma notável contribuição no campo de uma arte que lhe é complementar: a do jardim. Ele concedeu direito de cidadania às plantas plebeias. Utilizou-a como verdadeiro paisagista, pintor e arquiteto". São obras-primas dessa integração, na opinião do arquiteto Lauro Cavalcante, o Palácio do Itamaraty (uma das inúmeras parcerias com Oscar Niemeyer) e os jardins da residência de Odette Monteiro, em Petrópolis.

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A invenção de uma nova linguagem paisagista por Burle Marx contribuiu para modificações da atividade no cenário internacional. No Brasil, sua herança é compartilhada por poucos arquitetos-paisagistas, entre eles, a paulistana Rosa Grena Kliass e seus ex-estagiários Fernando Chacel e Haruyoshi Ono, do Rio de Janeiro.