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 | Ilustração: Osvalter Urbinati Filho
| Foto: Ilustração: Osvalter Urbinati Filho

Pureza contra o mal em produções de terror

Uma das representações mais significativas da figura infantil no cinema é frequentemente verificada nos filmes de terror. O gênero, que comumente trabalha com personagens com pouca ou nenhuma profundidade – facilitando, dessa forma, a identificação com o espectador – usa principalmente a criança como catalisadora da trama.

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As mazelas do mundo pelo olhar infantil

O cinema com frequência vai buscar a perspectiva de meninos e meninas para abordar temas espinhosos, como a guerra e a miséria.

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Entrevista

"A criança na tela vira pelo avesso a figura do professor no quadro"

Adriana Mabel Fresquet, doutora em Psicopedagogia pela Universidad Católica Argentina e professora do Programa de Pós-Graduação da UFRJ.

Leia entrevista na íntegra

  • Em Os Incompreendidos, um olhar mais autêntico da criança
  • A perspectiva infantil é privilegiada no filme Ladrões de Bicicleta
  • Fanny & Alexander, de Bergman: reencenação do universo infantil

A cena final de Os Incompreendidos, primeiro longa-metragem do diretor francês François Truffaut, é um dos momentos mais enigmáticos da história do cinema. Antoine Doisnel (Jean-Pierre Léaud), um garoto negligenciado pelos pais e desprezado pelos professores por ser considerado um rebelde irremediável e fadado à autodestruição, corre em uma praia na direção do mar.

No plano que encerra o filme, ele olha para a câmera (e, portanto, para o público) com uma expressão que confirma a carga de dor e abandono vivenciada em tão pouco tempo de vida, com a traumática passagem por um reformatório para delinquentes juvenis. Mas também deixa entrever um espírito audacioso e desafiador, potencializado pelo tom libertador desse desfecho em aberto, nem fatalista nem esperançoso.

Baseado em experiências vivenciadas na infância por Truf­­faut, Os Incompreendidos é citado pela pesquisadora Gilka Girardello, doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), como um exemplo de obra cinematográfica em que o olhar de uma criança é complexo o suficiente, autêntico, e não uma mera projeção adulta do que seria a infância.

Para a professora, há tantos filmes adultos construídos em torno da criança por vários motivos, mas um dos mais recorrentes seria a busca por um resgate da memória. "A infância é um momento fundador na vida de todo mundo, no qual a sensibilidade é extremamente aguçada, intensificada quando diante da descoberta algo novo", diz. Há, portanto, um grande fascínio por parte dos diretores pela possibilidade de reproduzir em suas obras esse modo agudo de ver o mundo, com o qual o espectador poderá ter forte identificação, uma vez que todos já fomos crianças.

Para exemplificar esses mo­­mentos infantis de descoberta e deslumbramento, Gilka lembra uma frase do escritor indiano Salman Rushdie (de Filhos dos Meia-noite), que disse em uma entrevista que teria descoberto que queria ser escritor quando menino, ao assistir a O Mágico de Oz (1939), musical clássico de Victor Fleming.

Outros cineastas buscaram reproduzir em seus filmes experiências de infância, como o sueco Ingmar Bergman, em Fanny & Alexander (1982), e o italiano Federico Fellini, em Amarcord (1973).

Movimentos

Se Os Incompreendidos é um dos títulos fundadores da Nouvelle Vague, que na virada dos anos 60 renovou a arte de fazer filmes, outros movimentos têm entre suas obras mais significativas longas-metragens nos quais crianças têm papéis que movem as narrativas.

No Neorrealismo Italiano, que aproxima o cinema da vida real já na década de 40, colocando a câmera nas ruas, no mundo, com a utilização de atores não profissionais, um dos títulos essenciais é o clássico Ladrões de Bicicleta (1948).

Antonio (Lamberto Maggiorani), um homem desempregado na empobrecida Roma do pós-Segunda Guerra, consegue um trabalho como colador de cartazes, mas sob a condição de que tenha uma bicicleta para se locomover. Para consegui-la, ele empenha a roupa de cama dele e de sua mulher, e acaba contratado. Mas a felicidade dura pouco: o veículo é roubado e ele, desesperado, tenta recuperá-lo com a ajuda do filho pequeno, Bruno (Enzo Staiola), cuja perspectiva é privilegiada pelo diretor Vittorio de Sica, em um artifício narrativo que amplifica o potencial dramático da história.

Crianças também assumem papéis centrais em um dos títulos fundamentais do Cinema Novo, Rio 40 Graus (1955), um semi-documentário do diretor Nelson Pereira dos Santos sobre a vida no Rio de Janeiro. O longa acompanha cinco meninos pobres, residentes de uma mesma favela que, em um domingo de verão, tentam arrumar algum dinheiro, vendendo amendoim no bairro de Copacabana, no Pão de Açúcar e no estádio do Maracanã.

A pesquisadora Fabiana de Amorim Marcello, doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora da Universidade Luterana do Brasil (Ulbra), diz que não é "à toa" que a criança está no centro das narrativas de todos esses movimentos cinematográficos, "dando voz, movimento e sentido para sentimentos, posições, crenças, anseios, desejos, medos de um tempo".

"Não estamos falando de momentos quaisquer: por um lado, estamos falando do período pós-guerra (Neorrealismo); por outro, de movimentos de contestação e de denúncia social (Nouvelle Vague, Cinema Novo). Falar da criança implica tocar num ponto crucial para nós: o futuro. É como se, por meio dela, ou talvez, a partir dela, pudéssemos nos colocar questões como: ‘O que será de nós?’, ‘O que faremos de nós?’, ‘O que nos resta?". A criança é, pois, uma imagem poderosa – e que, nesta condição, expressa muito mais do que ela mesma."

Mini-adulto

Representar no cinema esse olhar infantil tão potente e fundador, contudo, não é algo possível para Sandra Fischer, doutora em Cinema pela Universidade de São Paulo (USP) e professora do programa de mestrado e doutorado em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná (UTP). "Não acho que seja possível representar a criança no cinema, no teatro, na literatura – principalmente quando se trata de interioridades. Muito, mas muito mesmo, (ou será tudo?) nos escapa. Que se passa na cabeça de uma criança, o que veem os seus olhos? Lidamos, na verdade, com algo atinente ao que adultos imaginam a respeito de crianças. Cacos espelhados, fragmentos, possibilidades de facetas", diz Sandra.

Mas seria essa criança representada pelo cinema, então, uma espécie de mini-adulto? Fabiana de Amorim Marcello diz que há uma multiplicidade de noções de criança que o cinema coloca em funcionamento. "O que é, afinal, a ‘verdadeira’ criança? Ora, a meu ver, a ‘verdadeira’ criança não existe. O que existe são concepções, em nosso tempo, cada vez mais diversificadas de narrar a criança – e o cinema tem colocado em circulação e mesmo criado (a seu modo) noções profundamente férteis de criança."

Fabiana, no entanto, questiona a possibilidade de meninos e meninas serem representados como "mini-adultos". "Há, também aqui, diferentes formas de entender essa ideia. Será que não estamos falando de uma criança que não cabe mais na noção de inocente e ingênua? Será que não vimos, paulatinamente, ‘infantilizando’ a própria noção de infância – e, por isso, só nos resta entendê-la como ‘mini-adulto’? Ou, pensemos a partir de outra perspectiva: em meio a uma cultura em que a juventude é, pois, um imperativo muito mais do que um convite; em que a adolescência é um período no qual as crianças o mais rapidamente possível querem entrar e do qual os adultos não querem sair, será que não são mini-adolescentes o que temos acompanhado seja no cinema, seja em outros meios?"

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