O trabalho da Setra Companhia de Teatro oferece uma oportuna reflexão sobre o texto espetacular, em que a palavra deixa de ser o fundamento exclusivo do drama e serve a outros horizontes. Seria reducionismo dizer que o texto de “Ave Miss Lonelyhearts”, de Gustavo Marcasse, virou pretexto nas mãos do diretor Eduardo Ramos. O processo da equipe em sala de ensaio limou parte substancial da mediação verbal e alçou a primeiro plano variantes como a expressão corporal, o desenho de luz e a música executada ao vivo.
A dramaturgia elege como suporte cartas de três mulheres em distintos estágios da vida (a rigor, a moça, a adulta e a madura) trocadas com uma espécie de divindade, Miss Lonelyhearts, na contração inglesa para “corações solitários”. Curiosamente, Marcasse opera sobre fragmentos dessa plataforma epistolar em que, obviamente, a escrita é condição inalienável. Compõe lampejos, murmúrios e dilacerações de seres igualmente despedaçados em seus desejos.
O autor, por sua vez, tomou de inspiração o romance do escritor nova-iorquino Nathanael West, “Miss Lonelyhearts”, de 1933 (o que na contemporaneidade dá margem para lembrar da canção-título do álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, dos Beatles). Naquela obra, West alude a “Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada”, estudo pioneiro na observação da construção social do estigma, do antropólogo e sociólogo canadense Erving Goffman, atalho do qual Marcasse se apropriou em alguma medida.
Tomando-se o lastro da pesquisa para a criação textual, é estimulante notar como a encenação de Ramos foi decupando a massa a um só tempo informacional, poética e sensorial para focar no tempo e no espaço da estrutura física. Para um corpus ele propõe um corpo. Ou melhor, três. Fabiana Ferreira, Luiza Barreto e Vivian Schmitz buscam dar a ver os sentimentos subliminares ou à flor da pele, pelo menos na primeira metade da apresentação.
Gestos e movimentos não conformam exatamente uma coreografia. São estados expressivos no plano do tablado forrado por dezenas de envelopes brancos que ganharão função narrativa mais patente. Imagens como a queda e o rastejamento são reforçadas pela luz que adensa o vazio do espaço cênico e expõe a ossatura do palco ao fundo e nas laterais, mesma atenção conferida às figuras humanas que nele deambulam.
Apesar dos desníveis na preparação técnica das intérpretes quanto à partitura física bastante exigente e à modulação gutural ou balbucio que quase põe tudo a perder por resvalar na histeria, desvão da estereotipia feminina, “Ave Mis Lonelyhearts” cumpre, até aqui, um mergulho consistente para o desafio a que se propõe.
Na segunda parte, a condução imagética de Ramos, a intensidade das presenças das atrizes, a neutralidade dos figurinos de Amabilis de Jesus e a música incidental da guitarra de Roberto Donato e do violoncelo de Machisan Assis Abreu passam ao fogo brando da ilustração do texto, o que haviam evitado até então.
A experiência que abrira os poros da percepção do espectador a uma dramaturgia expandida agora cede à figuração. Roupas, adereços e objetos têm que dizer em nome do que e de quem representam/caracterizam. Ao falar de estigmas as escolhas encenadas são reconhecíveis, de pronto. Cadê a energia que pulsava até há pouco? Isso faz com que, por exemplo, a seminudez das atrizes destoem, porque não à vontade, de costas, perdendo a angulação dos movimentos sem fronteiras.
Até a palavra é restituída na participação de uma criança de dez anos, Larissa Chepelski, estabelecendo contraponto aos primeiros anos de formação dessas mulheres ora machucadas por amor, pela família ou pela sociedade. Esse tratamento em geral mais ameno amortece o impacto da cena final, sobre a destinação das cartas.
Ramos e demais artistas compartilham no mesmo espetáculo a proeza de mover expectativas sobre os escaninhos do teatro e da dança, devidamente destruídos, e a oscilação de não saber bem o que fazer com isso. Todos se empenharam para vislumbrar o mais difícil: o quanto há de beleza no ato do indizível, esta imanência da palavra deslocada do eixo. Deixamos a plateia com o gosto de quero mais da arriscada primeira parte.
Valmir Santos é jornalista, crítico e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena.