As personagens vividas por Adèle Exarchopoulos (à esq.) e Léa Seydoux compartilham cenas quentes de amor| Foto: Divulgação

Censura

Filmes não vão ter versões em Blu-ray no país

A polêmica que Azul É a Cor Mais Quente gerou ao ser impedido de ser lançado no formato Blu-ray por conter cenas de sexo explícito atingiu também Ninfomaníaca. O primeiro volume do longa de Lars von Trier não sairá em alta definição no Brasil.

O mercado nacional apenas terá acesso às verões em DVD desses longas-metragens. O longa de Abdellatif Kechiche chegou nesta semana às locadoras, enquanto o de Von trier tem lançamento previsto para 23 de abril.

Segundo a California Filmes, distribuidora de Ninfomaníaca, a razão é a mesma utilizada para vetar o filme Azul É a Cor Mais Quente: as cenas de sexo explícito. As duas principais empresas que replicam títulos em Blu-ray no Brasil, a Sonopress e a Sony DADC, se recusaram a realizar o serviço, alegando "conteúdo inadequado". A alternativa, talvez, seja fazer as cópias no exterior.

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Sexo perturba e fascina. No cinema, quando não é sugerido, insinuado, e é exibido, em detalhes, pode incomodar – e muito. Mas também ser um chamariz de público. Talvez porque, ao longo das duas últimas décadas, na medida em que as salas de exibição de rua foram sendo fechadas, migrando para o interior de shoppings, replicando-se em multiplexes, os filmes tenham deixado de ser feitos também pensando em adultos. Houve uma infantilização generalizada decorrente desse processo, e quase todos os títulos que pretendem alcançar alguma ressonância comercial não podem abrir mão de ter crianças e/ou adolescentes na plateia.

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Nos últimos meses, quatro longas-metragens que estrearam no Brasil acabaram chamando a atenção tanto da imprensa quanto do público por levarem à tela grande cenas de sexo explícito entre os personagens: Azul É a Cor Mais Quente, do franco-tunisianio Abdellatif Kechiche, Ninfomaníaca – Volumes 1 e 2, do dinamarquês Lars von Trier, e O Estranho no Lago, do francês Alain Guiraudie.

Cada um a sua maneira, esses filmes fizeram muita gente repensar o conceito de pornografia, questionando se, afinal de contas, era mesmo necessário que seus diretores tivessem feito a opção radical de "mostrar tudo", convencidos de que as cenas mais quentes eram essenciais para o desenvolvimento dramático das tramas. Há, também, a importância política de terem corrido o risco de tirar o sexo do gueto, do âmbito do "entretenimento adulto", para trazê-lo à luz como um componente essencial da vida, e fundamental na história do cinema desde seus primórdios.

O longa de Kechiche, Azul É a Cor Mais Quente, venceu a Palma de Ouro no Festival de Cannes do ano passado e se tornou um sucesso inesperado, ainda que apenas no circuito mais restrito do cinema de arte. No Brasil, teve 123.413 mil espectadores pagantes, apesar de ter sido distribuído em poucas salas.

Recém-lançado em DVD no país, Azul É a Cor Mais Quente é baseado na graphic novel homônima de Julie Maroh. Tem como personagem central a adolescente Adèle (Adèle Exar­­chopoulos), filha da classe média trabalhadora do norte da França, uma garota que adora literatura e sonha em se tornar professora primária, porque deseja devolver às crianças as descobertas que a escola e alguns professores lhe proporcionaram, conhecimentos que talvez seus pais, menos letrados e mais preocupados em sustentar a família, não tiveram como oferecer a ela.

Mas Adèle, apesar de madura para a sua idade, é inquieta: começa a perceber que, ao contrário de suas amigas de colégio, não se sente tão atraída pelos garotos. Seu desejo é maior por meninas. Isso significa ser diferente, "ter um problema". E quando ela vê pela primeira vez, atravessando a rua, Emma (Léa Seydoux), uma jovem estudante de Belas Artes um pouco mais velha, de cabelos curtos e pintados de azul, algo acontece em seu coração.

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As duas vão se reencontrar, se apaixonar e viver uma história de amor muito intensa e tumultuada, com tórridas cenas de sexo explícito – uma delas, a mais comentada, tem sete minutos de duração, sem cortes. Como no centro da trama está o processo de autodescoberta de Adèle, esses momentos da trama, nos quais a personagem vivencia, pela primeira vez, o amor verdadeiro e as possibilidades do seu corpo, fazem total sentido.

O crítico de cinema Carlos Eduardo Lourenço Jorge, que também administra o Cine Com-Tour UEL, ligado à Universidade Estadual de Londrina, estava em Cannes na primeira exibição de Azul É a Cor Mais Quente no festival. Ele conta que, possivelmente por conta de o filme estar sendo lançado na França justamente quanto o casamento gay estava em discussão, o longa tornou-se ainda mais comentado e debatido. Na coletiva de imprensa, da qual Jorge participou, uma das grandes dúvidas dos jornalistas presentes era se as duas atrizes, Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux, haviam ou não atingido o orgasmo. Essa curiosidade atesta o impacto que tiveram a crueza e o realismo com que o sexo foi tratado pelo diretor Abdellatif Kechiche, conhecido por ser um homem de poucas palavras.

O que se conseguiu descobrir, durante a entrevista, foi que o cineasta procurou deixar as atrizes muito à vontade, em um set esvaziado, para evitar constrangimentos.

Meses mais tarde, Léa Seydoux passaria a reclamar publicamente dos métodos do diretor. Segundo ela, algumas cenas chegaram a ser filmadas mais de 20 vezes e a principal delas, a de sete minutos, teria sido repetida diversas vezes, ao longo de vários dias, o que, segundo a atriz, a fez se sentir "uma prostituta", como ela contou ao jornal Le Monde.

Kechiche rebateu as críticas, acusando Léa de ser "uma criança mimada e arrogante", alegando que, na exibição do filme no festival, do qual ela e Adèle saíram com o prêmio de melhor atriz, ela se desdobrou em elogios ao seu trabalho na condução do filme.

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Para o jornalista e crítico paulista João Nunes, do jornal Correio Popular, de Campinas, todo o frisson causado pelas cenas de sexo do filme, apesar de a história lidar com o tema da homossexualidade, tem muito a ver com o fato de que são duas belas mulheres em cena, o que aguça o lado fetichista de muitos homens, além de também atrair o público gay feminino. "Se fossem dois homens, a reação seria muito diferente." Lourenço Jorge concorda: "A beleza da nudez feminina, do sexo entre duas mulheres de corpos perfeitos, é algo mais estético, gera mais empatia e parece agredir menos o público médio."

Entre homens

Essa lógica talvez explique a repercussão muito menor que O Estranho no Lago, do francês Alain Guiraudie, teve no Brasil – em Curitiba, o título sequer foi lançado até agora.

Eleito o melhor filme de 2013 pela prestigiada revista francesa Cahiers du Cinéma, o filme, um thriller, tem como cenário um lago que se torna uma espécie de praia nudista e ponto de encontro de homens gays, que usam o bosque vizinho para manter relações sexuais. Franck (Pierre Deladonchamps, leia entrevista com o ator na página 3) é um dos frequentadores mais assíduos do local. Lá, ele faz amizade com Henri (Patrick d’Assumçao), um sujeito solitário que não parece ter interesse em outros homens, de quem o rapaz se torna amigo. Mas Franck irá se apaixonar de verdade por Michel (Christophe Paou), um homem misterioso, com quem viverá um romance altamente erotizado, com várias cenas de sexo explícito.

Mesmo tendo obtido críticas muito positivas ao redor do mundo, inclusive no Brasil, onde mereceu destaque nos grandes jornais de São Paulo e Rio de Janeiro, O Estranho no Lago, que chega às locadoras em maio, atraiu apenas 17.326 mil espectadores, e não foi exibido em várias capitais. Azul É a Cor Mais Quente teve um público mais de seis vez maior. É certo que longa de Abdellatif Kechiche tinha, a seu favor, uma Palma de Ouro em Cannes, mas Guiraudie venceu o prêmio de melhor direção na mostra Um Certo Olhar no mesmo festival.

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Para João Nunes, cenas de sexo entre homens espantam o público. É simples assim. Ele cita como exemplo Tatuagem, longa do diretor pernambucano Hilton Lacerda, vencedor do Kikito de melhor filme no Festival de Gramado no ano passado, e um dos longas nacionais mais festejados pelos críticos do país. Estrelado por Irandhir Santos e Jesuíta Barbosa, cujos personagens vivem uma ardente história de amor nos anos 1970, durante o regime militar, o filme foi amplamente divulgado pela imprensa, mas apenas 32 mil pessoas o viram. É muito pouco. Tanto João Nunes quanto Lourenço Jorge concordam que, além dos sérios problemas de distribuição que o cinema nacional mais independente e autoral enfrenta, o fato de retratar de forma realista o sexo entre homens tem a ver com o fraco desempenho comercial.