Quando iniciei meus estudos acadêmicos de História, em 1988, minha percepção era, talvez antecipando o infeliz Francis Fukuyama, de que a História tinha chegado ao fim. Tudo era tão (falsamente) seguro e imutável, que nada mais de interessante e significativo parecia poder acontecer em nosso mundo. Deixando de lado minha ignorância sobre o que realmente acontecia, até aquele ano, a Guerra Fria e a partilha do mundo entre comunistas e capitalistas davam a sensação equivocada de que vivíamos um período de equilíbrio e relativa tranquilidade, ofuscada, aqui e ali, por conflitos regionais.
De fato, desde 1980, notícias de mudanças e reformas significativas na Europa Oriental começavam a ser uma constante nos suplementos internacionais dos jornais. A URSS já não tinha mais condições de controlar os países sob sua influência direta, como fizera em 1953, na Alemanha Oriental, em 1956, na Hungria e, em 1968, na Checoslováquia. A partir de 1978, com a eleição de Karol Wojtyla ao papado e a formação do sindicato Solidariedade, não só a Polônia socialista, mas a própria URSS e os outros países socialistas começavam a dar sinais de desgaste e de que não estavam mais conseguindo controlar tudo, como antes tiveram condições de fazer.
As demandas por reforma e mais liberdade começavam a pulular por toda parte naquela região. Por toda parte, mas talvez menos na Alemanha Oriental, um dos satélites mais fiéis da URSS, que se mostrava tão tenazmente fiel à cartilha do marxismo-leninismo, que seus líderes ousavam dar reprimendas ao secretário-geral do PC, tendo em vista a liberalidade da Glasnost e da Perestroika, por ele sugeridas.
A República Democrática Alemã (Alemanha Oriental) foi criada em 1949 pelos soviéticos no território por eles ocupado na Alemanha, após a derrota dos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Diferentemente de sua vizinha ocidental, a Alemanha Oriental não teve um início auspicioso. Os soviéticos tiraram tudo o que puderam, desde trilhos de bonde até vacas leiteiras de sua zona de ocupação, como parte de sua indenização pela guerra.
O título do hino nacional da Alemanha Oriental, "Auferstanden aus Ruinen" ("Levantados das Ruínas"), não era apenas figura de linguagem. O país estava mesmo demolido. Acrescente-se a isso o fato de que a essa população foi imposto um governo ditatorial, integrado por comunistas locais, que não contava com apoio da maior parte dos cidadãos e que gradualmente transformou o país numa república socialista, cujo adjetivo "democrática", este sim era figura de linguagem.
Para controlar a população e se informar sobre o que ocorria na sociedade, o regime viu a necessidade de criar um órgão responsável por vigiar e interceptar qualquer desafio à ordem estabelecida, a Stasi, abreviatura para Ministerium für Staatssicherheit (Ministério para Segurança do Estado). Esse órgão, conhecido como a "Firma", entre os alemães-orientais transformou a Alemanha Oriental num Estado policial, opressivo e desumano do qual ninguém gostava.
A Stasi tinha informantes em todas as esferas da sociedade e acabou por desenvolver o que seria, talvez, o mais perfeito sistema de vigilância de todos os tempos, superando a Gestapo de Hitler e a KGB soviética, em termos de pessoal engajado e de aparato de espionagem. Cerca de um em cada sete cidadãos do país estava envolvido de alguma forma com a Firma, seja como funcionário, informante em tempo integral ou parcial.
Na verdade, seu poder era tão amplo que dispunha de faculdades, hospitais, centros de treinamento esportivo de padrão olímpico (muitos atletas estavam na folha de pagamento da Stasi), além de oferecer diversos tipos de treinamento, entre eles o de terrorismo, para alunos de diversos países. Sem ela e sem o apoio das tropas soviéticas alocadas no país, o Estado alemão-oriental teria provavelmente sucumbido muito antes, pois não contava com o apoio natural de sua população.
É de se esperar que um regime tão opressivo como o da Alemanha Oriental gerasse tentativas de reformas e revoltas internas. Havia uma grande pressão interna, que somente encontrou um mecanismo de escape com a chegada de Willy Brandt ao poder na Alemanha Ocidental, no final dos anos 1960. Brandt colocou em prática uma política de convivência pacífica com os países da Europa Oriental, a Ostpolitik, superando o jogo duro do arquiconservador Konrad Adenauer com a Alemanha Oriental.
Com essa política, houve uma normalização das relações entre as duas Alemanhas e foi criado um sistema de convivência pacífica através do qual, elementos indesejados ou opositores recalcitrantes da Alemanha Oriental eram repassados para a Alemanha Ocidental em troca de quantias variáveis, calculadas de acordo com o nível de instrução e a profissão da pessoa.
Um engenheiro eletrônico valia muito e um pastor luterano valia pouco nesse mercado "inter-alemão" de trocas. Numa Alemanha unificada já há quase 20 anos, muitos não querem pensar no passado. Entre outros, surge uma nostalgia por esse país, que, afinal de contas, com todos os seus defeitos, era seu lar. Automóveis Trabant ou Wartburg, refrigerantes Spreequell ou Brisant, toca-discos Granat, cosméticos Florena, ressurgem reelaborados com tecnologia ocidental, mas com design inspirado na Alemanha Oriental, para conquistar os consumidores saudosos dos velhos tempos. Essa Ostalgie, como é chamada, demonstra que muitos gostavam, pelo menos de alguns aspectos, da vidinha segura que o comunismo oferecia.
Ao menos não tentaram recriar a horrenda arquitetura oficial da RDA, caracterizada pelo concreto armado, ferro, amianto e um indescritível vidro espelhado marrom, que não deixa de ter semelhança com os tenebrosos caixotes de concreto armado construídos nas cidades brasileiras entre os anos 1960 e 1980.
Seu último ícone arquitetônico, o Palast der Republik, que servia como sede da Volkskammer da RDA, foi posto abaixo há alguns meses para dar lugar à reconstrução controversa da antiga residência dos reis da Prússia, que, por sua vez, fora demolida pelos comunistas depois da Segunda Guerra Mundial, por razões óbvias. Em uma certa medida, essa nostalgia pode ser sentida na produção cinematográfica alemã na era pós-unificação, como em Go Trabi Go, ou no mais conhecido Adeus, Lênin, ou ainda no premiadíssimo A Vida dos Outros, que, no entanto, de nostálgico não tem nada.
Mesmo sem uma liderança efetiva e levando-se em conta a tendência dos alemães a uma certa obediência e submissão à autoridade, o sistema era inviável, tanto que, a partir de maio de 1989, começaram a ocorrer manifestações de populares, que exigiam reformas no sistema calcificado da Alemanha Oriental.
Em pouco tempo, sem a sustentação soviética, o regime comunista caiu como um castelo de cartas. No final de 1989 e nos primeiros meses de 1990, foi estabelecida uma democracia na RDA, que optou logo depois por ser integrada, não sem protestos, na República Federal da Alemanha. Isto marcou o fim de um monumento da Guerra Fria, um país que ninguém queria.