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Paul Krugman

A burrice em torno do déficit

Como qualquer pessoa que escreva regularmente sobre o teatro disfarçado de debate econômico e fiscal na política norte-americana, desenvolvi uma forte tolerância a bobagens. Se fosse me incomodar a cada vez que um poderoso de plantão exibisse incoerência ou desonestidade, eu passaria o tempo todo num estado de furioso desespero.

Mesmo assim, existem mo­­­mentos em que digo: "Eles não podem ser assim tão estúpidos" ou "Eles não podem pensar que os outros sejam assim tão estúpidos". Passei por um desses momentos ao ler a respeito de uma recente conferência sobre políticas de saúde, ocasião em que houve um diálogo envolvendo assessores parlamentares dos dois grandes partidos dos Estados Unidos.

De acordo com um texto publicado no Kaiser Health News, os assessores republicanos reclamaram de todas as propostas voltadas para melhorar a aplicação dos recursos do Medicare e do Medicaid (sistemas públicos de saúde dos EUA). Fundos para a prevenção de doenças não passariam de um "futuro caixa dois". A pesquisa com a finalidade de buscar inovações seria "um paradoxo". E não haveria razões para gastar dinheiro com "supostas pesquisas de eficácia".

Para contextualizar o assunto, é preciso ter em mente dois aspectos da situação fiscal dos EUA. Primeiro, a nação não está "quebrada". O governo federal não encontra dificuldade para captar dinheiro e o custo desses empréstimos – o juro cobrado nos títulos públicos – está historicamente baixo. Portanto, não há necessidade de correr para cortar despesas agora, agora, agora. O país pode e deve ter disposição para gastar neste momento caso o investimento gere futuras economias.

Em segundo lugar, mesmo que o governo norte-americano tenha um problema fiscal de longo prazo, essa questão está intimamente ligada ao aumento dos custos da saúde. O Serviço Orçamentário do Congresso dos EUA estima que a relação entre o gasto com a Previdência Social e o PIB irá crescer 30% nos próximos 25 anos, à medida que a população envelhecer. Porém a mesma estimativa indica que a fatia do PIB dedicada ao Medicare e ao Medicaid deverá dobrar de tamanho.

Ou seja, se alguém estiver falando sério sobre o déficit, essa pessoa não pode defender a poupança imediata de alguns tostões; ela deve buscar maneiras de controlar os gastos futuros com o sistema de saúde. E isso significa a adoção das mesmas medidas que foram ridicularizadas pelos assessores republicanos.

Considere o seguinte: o Con­­gresso norte-americano poderia, numa canetada, cortar as despesas previdenciárias pela metade. Mas seria impossível fazer o mesmo com a saúde. O Medicare não pode, de uma hora para outra, bancar apenas a substituição de meia válvula cardíaca ou exigir que as cirurgias para a implantação de pontes de safena sejam interrompidas antes do fim.

Limitar o custo da saúde, portanto, exige uma abordagem mais inteligente. É preciso concentrar-se na prevenção, que em geral é mais barata do que a cura. Inovações no gerenciamento do sistema são necessárias. E, acima de tudo, precisamos saber o que funciona e o que não funciona, para que o Medicare e o Medicaid possam negar a cobertura de procedimentos que trazem pouco ou nenhum benefício médico. As "supostas pesquisas de eficácia" são essenciais em qualquer tentativa racional de resolver o problema fiscal dos EUA.

Porém os republicanos de hoje não querem saber de racionalidade. Eles dizem que estão muito preocupados com o déficit, mas passaram os últimos dois anos colocando no centro de sua estratégia eleitoral ataques cínicos e demagógicos às tentativas reais de lidar com o rombo nas contas públicas.

Eis um exemplo recente: em seu novo livro, Mike Huckabee – que lidera as sondagens sobre quem deverá ser o candidato republicano nas eleições de 2012 – critica o estímulo econômico do governo Obama pelo fato de o pacote ter incluído repasses a pesquisas de eficácia. "O estímulo não apenas desperdiçou dinheiro. Ele plantou as sementes que darão origem à árvore venenosa dos painéis da morte", diz. Será que algum outro republicano terá coragem de dizer que Huckabee está errado, que o Medicare precisa saber quais são os procedimentos clínicos realmente eficazes? Melhor esperarmos sentados até que isso ocorra.

É claro que os republicanos não são os únicos cínicos. À medida que o debate nacional sobre política fiscal escorrega cada vez mais fundo na direção da mesquinharia e de absurdos que guardam graves consequências para o futuro, uma voz permanece estranhamente calada: a de Barack Obama.

O presidente e seus auxiliares sabem que as ideias orçamentárias do Partido Republicano são equivocadas e destrutivas. Mas eles pararam de defender uma alternativa. Em vez disso, transformaram-se na versão mais light da ignorância e aceitam o argumento de que os gastos precisam ser cortados imediatamente – apenas não tanto quanto desejam os republicanos. A assessoria política de Obama está convencida de que a estratégia de camuflagem dá ao presidente mais chances na corrida para a reeleição – o que talvez seja verdadeiro. Mas isso não altera o fato de a Casa Branca ser cúmplice no processo de emburrecimento do debate orçamentário.

Essa burrice toda é um mau presságio para o futuro dos EUA. A saúde é apenas um dos grandes problemas que o país precisa solucionar. Eles vão da infraestrutura às mudanças climáticas, questões que demandam uma reflexão profunda. No lugar disso, os norte-americanos veem políticos que, de um lado, zombam do conhecimento e exaltam a ignorância e, de outro, se escondem e fingem concordar ao menos em parte com os opositores.

Tradução: João Paulo Pimentel.

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