O ajuste das contas públicas é o desafio que o sistema político terá de enfrentar quando a governabilidade for restaurada, independentemente do resultado da votação sobre o impeachment neste domingo na Câmara. Esse é o item número um em uma agenda política e econômica, na opinião do economista-chefe do Banco Safra, Carlos Kawall.
Para ele, não existe rota alternativa, mesmo que haja sinais positivos, como a inflação em queda e o ajuste nas contas externas.
Na entrevista a seguir, concedida à Gazeta do Povo por telefone antes de uma visita a Curitiba, onde deu uma palestra na Mercosuper, Kawall argumenta que a solução da crise passa por uma desvinculação orçamentária e a reforma da Previdência.
O mercado apostou muitas fichas no impeachment e até o FMI diz que o crescimento só volta com a solução da crise política. O impeachment é a única saída para a economia?
Não é uma questão de um resultado ou outro, que leva a um efeito temporário nos mercados. O importante é a gente ter mente é que o país precisa restaurar a governabilidade, é você ter a possiblidade de fazer consenso. Isso com um placar ou outro, para o país avançar na agenda de reformas estruturais necessárias. A situação dramática que a gente vive hoje é no setor real da economia. Em dois anos, o PIB per capita terá caído 10%. Quedas dessa magnitude estão associadas a países em guerra, ou tendo uma situação muito conturbada. A crise é muito grave e para sair dela a gente vai ter que fazer reformas, especialmente as relacionadas à situação fiscal. E dentro dela, notadamente, temos que resolver o problema da Previdência. Daí a necessidade de a gente ter uma restauração da governabilidade, qualquer que seja o resultado do impeachment. Não adianta ganhar o impeachment e não avançar na agenda.
No cenário que você traça há uma melhora das contas públicas com o impeachment?
Temos um cenário em que a trajetória fiscal se deteriora de forma contínua e outro em que se consegue avançar em uma agenda de reformas na qual se gera uma trajetória que equilibra a proporção da dívida pública em relação ao PIB, o que permitiria uma redução bem mais forte da taxa de juros, que ajuda na recuperação da economia. Os juros menores também ajudam na redução da dívida pública. Há algo também que os analistas estão deixando de lado que é a situação do setor privado. Nesta crise, ao contrário das crise anteriores, as empresas estão muito mais endividadas devido ao baixo crescimento econômico. Isso indica que a recuperação será bem mais lenta do que em outras ocasiões. Elas terão de buscar parceiros e investidores estrangeiros para aportar capital e melhorar sua saúde financeira para que elas possam voltar a investir.
A Fazenda enviou um projeto de mudança na Lei de Responsabilidade Fiscal, com um teto de gastos. Como você avalia o projeto?
O conceito de teto de gasto é um avanço. A gente tem na Constituição pisos, mas não há teto. Sem um limite, se a economia não cresce, a carga tributária teria que crescer continuamente. Não faz sentido isso. O conceito é bom, mas proposta do Ministério da Fazenda fica aquém daquilo que é necessário porque as maiores vinculações de gastos são definidas no plano constitucional. Isso deveria ser feito através de uma reforma constitucional. É mais difícil, mas a solução definitiva passa por esse tipo de limitação do crescimento do gasto. É isso que está causando o crescimento excessivo da dívida pública e o ciclo vicioso de mais elevação de juros, mais retração da atividade, menos receita pública, redução do faturamento das empresas, elevando o risco Brasil. Para quebrar isso, é preciso um ciclo virtuoso de ajuste, estabilidade nas contas públicas, redução das taxas de juros, alívio financeiro para empresas e governo, com retomada do crescimento econômico.
Fora das contas públicas há alguns sinais positivos de ajustes, como a queda da inflação. Isso indica um ajuste já da economia?
Imagine que temos um paciente com uma série de problemas. Ele tem de operar o fêmur, tem problema de pulmão e outras coisas. Mas, além de tudo, ele tem uma insuficiência cardíaca crônica. Todas as outras coisas vão ser importantes quando ele resolver o problema cardíaco, não antes disso. Hoje não temos uma crise de balanço de pagamentos, e é verdade que a inflação está alta e que houve uma mudança no câmbio. Claro que você tem um certo alívio com esses ajustes. É possível que por isso caiam os juros moderadamente. Mesmo assim, a gente continuaria com juros reais muito elevados porque o risco Brasil ainda é muito alto. Um déficit público de 10% do PIB não é razoável. Todas essas outras coisas que estão melhorando não foram suficientes para evitar a perda do grau de investimento. A gente tem de tratar o problema cardíaco.
Você imagina que teremos um horizonte muito longo de crescimento baixo após a estabilização da economia?
Se você não cresce, não resolve o problema das empresas nem do governo. Só se sai de uma situação de alto endividamento com a economia crescendo e os juros caindo. Para isso é necessária uma equação da situação fiscal. Se o governo todo ano for para o mercado e tomar 10% do PIB de crédito, a taxa de juros vai subir. Existe uma percepção errônea de que a gente sai dessa crise como saiu das anteriores, quando basicamente o real se desvalorizava e o governo subia impostos. A gente nunca atacou de frente o problema do gasto. Muita gente dizia: olha, no longo prazo o Brasil vai comprometer seu crescimento. O longo prazo virou curto prazo.
Entre as propostas do governo está uma mudança na gestão do Banco Central, com a criação dos depósitos voluntários. É a hora para essa alteração?
Sou favorável a essa mudança, tem precedência internacional. Mas se a tentativa é você fazer isso para depois mostrar que a dívida é menor, não é o caso, é a hora errada. Se lá na frente a dívida bruta for estabilizada, aí sim, vale a pena resolver todos os outros problemas. A questão da abertura comercial, melhorar a regulação para atrair mais capital privado para infraestrutura, a legislação trabalhista, reforma política.
Uma opção por reformas menores antes de uma mudança fiscal não adiantaria?
Não adianta porque no fim você pode até se sentir melhor, mas o problema crucial não terá sido resolvido. É melhor do que não fazer nada, mas meu medo é que as pessoas achem que, como é difícil resolver a questão dos gastos obrigatórios, seja melhor partir para outras coisas que, somadas, compensariam o problema maior.
Esse foi o sinal que o governo deu ao abandonar a reforma da Previdência.
Todo mundo sabe o que precisa mudar na Previdência, mas isso resolve o problema em dez, 15 anos. A gente precisa de uma solução já para a rigidez do gasto, que todo ano joga as despesas para cima. Temos algum tempo ainda, não estamos perto do calote da dívida púbica. Não podemos cair na ilusão de que o câmbio ou outra melhora vai resolver. A matemática não mente, a conta não fecha.
O que teria efeito imediatamente?
A gente tem que ter um teto de gastos. Como você pode ter de pagar eternamente por um gasto se não tiver dinheiro? Isso joga o juro lá para cima, joga o custo da dívida para cima, a gente perde o grau de investimento, as empresas passam por dificuldades financeiras. Tem gente que fala em teto de gastos, outros falam em orçamento base-zero, mas se trata de algo que faça um orçamento que caiba nas receitas. Quando fizer isso, o efeito vai ser muito benéfico nas taxas de juros.