Foi emblemático. Ainda em abril, o então candidato republicano Donald Trump subiu em um palanque nos arredores da fábrica da Ford em Michigan. Ao seu estilo, bradou sobre o lado “ruim” da imigração e os malefícios do livre-comércio. Ameaçou a montadora, que acabava de anunciar uma fábrica no México – taxaria em 35% os carros produzidos para lá da fronteira.
Foi uma tacada certeira rumo à cadeira mais confortável da Casa Branca. E mais um punhal cravado no peito da globalização. A fatia mais considerável do êxito de Trump se deve justamente ao discurso populista que encantou aqueles que se sentem marginalizados pela circulação de bens e pessoas entre os países. Eleitores de estados desindustrializados, como Michigan e Ohio, algo que o Huffington Post chamou de “Brexit do meio-oeste”, formaram sua sólida base eleitoral.
Confira pontos cruciais para a “onda antiglobalização”
Para Trump, globalização é apontada como um sistema para ajudar a “elite financeira”
A globalização não é coisa nova. Mas se tornou o modelo vigente nos últimos 30 anos. Foi responsável por integrar boa parte do mundo não só econômica, mas culturalmente e em torno de interesses comuns, como acordos climáticos e mediação de conflitos.
O contraponto a essa ideia é que o protecionismo torna as empresas locais mais competitivas. Para isso, vale aumentar as taxas sobre importação e criar barreiras para a circulação de produtos. Donald Trump sugeriu rever parte dos contratos comerciais dos Estados Unidos com parceiros de longa data.
Além disso, a onda antiglobalização pretende dificultar a saída das indústrias como uma forma de evitar a fuga de capital e de fortalecer o mercado de trabalho interno. Também tem esse fim barrar a imigração, que, para muitos, é uma das causas do desemprego e da queda dos salários.
No discurso de Trump, a globalização é apontada como um sistema para ajudar a “elite financeira” e deixar “milhões de trabalhadores sem nada”. “Eles conseguem a expansão de seus negócios e nós o desemprego”, disse em um de seus discursos.
A comparação é pertinente, já que a saída do Reino Unido da União Europeia (o Brexit), define Kai Enno Lehmann, professor de Relações Internacionais da USP, mostrou a força que o movimento antiglobalização está tomando. “Esse indicativo incentiva parceiros políticos em outros lugares. Quem sabe França, Japão e China não começam a adotar posturas semelhantes”, projeta Lehmann.
Tão logo saiu o resultado, o ex-líder da Frente Nacional da França Jean-Marie Le Pen postou no Twitter: “Hoje os Estados Unidos, amanhã a França”. Sua filha, Marine Le Pen, de posições claramente protecionistas, desponta na França como grande nome para as eleições presidenciais de 2017. Na Alemanha, a oposição a Angela Merkel também se fortalece.
“É interessante notar, aliás, que o processo de recuo da globalização já vinha ocorrendo, como vem alertando a Organização Mundial do Comércio (OMC). Nos anos 1990, o comércio global crescia pelo menos um ponto porcentual acima do PIB mundial. Foi uma fase de liberdade de movimento de capitais, da consolidação da União Europeia (UE) e do fim de barreiras comerciais. Hoje, o comércio já cresce igual ao PIB. Na China, cuja ascensão se deu por meio de exportações, o comércio está perdendo parte da importância, e a economia está se voltando para o mercado interno”, disse o ex-presidente do Banco Central Carlos Langoni à Agência O Globo. “A discussão é o esgotamento e até a reversão da globalização”, disse.
Bode expiatório
Culpar a globalização tem sido a saída mais fácil para arrebanhar os descontentes. “É um discurso sob medida para essa classe que está contestando o establishment. O contrato social do governo com o povo foi quebrado. O cara pensa ‘está todo mundo dando ordem, fazendo acordos, enriquecendo, mas cadê o emprego do cidadão americano?’”, diz Sérgio Itamar, professor de análise de riscos da Isae/FGV. Só que, levantar as barreiras comerciais, ele aponta, sempre foi muito mais benéfico do que maléfico.
Estudo da The Economist usando dados das Nações Unidas e órgãos privados mostra por exemplo que o crescimento econômico dos países em desenvolvimento – aqueles que receberam muitas das fábricas saídas dos países ricos – tirou milhões de pessoas da pobreza extrema entre os anos 1990 e 2000.
Da mesma forma, para os países abonados, a globalização barateou os processos de produção e garantiu a estas nações um poder de compra que enalteceu os brios consumistas. Ainda segundo a Economist, estudos feitos em 40 países apontam que o poder de compra dos moradores de países ricos cairia 28% se a globalização fosse revertida. Pior para a classe média-baixa, que teria perda de 63%. Não só isso, o mercado exportador é significativo e um bom empregador. Inclusive nos Estados Unidos.
Moderação
A globalização, porém, não ofereceu uma saída para algo bem mais pragmático. Números do Departamento de Trabalho dos EUA apontam que a indústria norte-americana emprega hoje 12,2 milhões de trabalhadores. É 37% menos que os 19,5 milhões de 1979, uma época em que a população do país era quase um terço mais enxuta. E não oferece a saída porque talvez esse não seja seu papel.
“A incompetência dos países em cuidar de sua política interna é que complica as coisas”, resume Sérgio Itamar. “A globalização leva a crescimento, tem efeito líquido positivo, mas não resolveu a desigualdade. Estamos falando de investimento em capital humano. Isso depende de políticas públicas, que variam de país para país”, acrescenta Langoni.
A globalização sai enfraquecida e, possivelmente, a troca entre os países não volte ao patamar da última década. Pactos como o Acordo Transpacífico (TPP) e Acordo de Livre Comércio Norte-Americano (Nafta) dificilmente se sustentarão. O que não significa que ela vá morrer.
“A globalização é um caminho sem volta. Não vai acontecer uma virada. Os países não tem como viver sem ela. A questão é que os acordos serão mais bem mapeados. Haverá sim uma proteção dos produtos internos”, projeta Itamar. “Mas o que mais se tira disso tudo é que o povo mandou seu recado: ‘somos nós quem mandamos. E não estamos satisfeitos”, conclui.
A globalização leva a crescimento, tem efeito líquido positivo, mas não resolveu a desigualdade. Estamos falando de investimento em capital humano.
Ventos de mudança
O Brexit dos britânicos e a vitória incontestável de Donald Trump nos EUA já se tornaram marcos de um movimento antiglobalização. Mas outros ainda virão:
Junho de 2016
Por meio de um plebiscito, a população do Reino Unido decide deixar a União Europeia. “Nós queremos o país de volta”, defendia o slogan de Nigel Farage, líder do partido Ukip e principal defensor da saída. As áreas com menor poderio econômico foram a força por trás da vitória no referendo popular–um indício da insatisfação com o modelo até então vigente.
Novembro de 2016
O republicano Donald Trump vence a eleição presidencial norte-americana de forma surpreendente. O êxito em estados como Pensilvânia, Ohio e Wisconsin – regiões que sofrem com alto índice de desemprego – lhe deram uma folga de 53 votos no colégio eleitoral contra sua oponente, a democrata Hillary Clinton.
Abril de 2017
A França inicia suas eleições presidenciais. Marine Le Pen, da Frente Nacional, é o principal nome da disputa, segundo as sondagens iniciais. Ela defende o que chama de “patriotismo econômico”. Em entrevista à Folha de São Paulo, em 2014, afirmou querer dizer às multinacionais que “elas têm direito de vender os produtos na França desde que sejam fabricados na França”.
Setembro de 2017
A Alemanha decidirá a permanência ou substituição da chanceler Angela Merkel. O AfD, partido de oposição que abraça ideias anti-imigratórias e de proteção do mercado nacional, vem crescendo a passos largos. “As questões que levaram a classe média a votar em Donald Trump são as mesmas questões que encaramos na Europa”, disse o líder da AfD, Frauke Petry.
Outubro de 2018
O Brasil irá às urnas em um cenário ainda incerto. Caso a tendência antiglobalização se acentue, o próximo presidente deverá ter respostas claras de como estimulará o consumo interno. “A insatisfação do brasileiro é clara quando algumas pessoas começam a enaltecer a ditadura, por exemplo. Pode ser que isso vire para um viés econômico. O povo pode começar a pensar ‘vamos mudar tudo isso’”, diz Sérgio Itamar, da Isae/FGV.
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