Aposentados e pensionistas tentam sacar benefícios em Caracas, capital da Venezuela| Foto: FEDERICO PARRA/AFP

Dionisia passou a noite preocupada com o marido. Ele havia saído de casa para trabalhar na manhã anterior e ainda não tinha retornado. A angústia vivida naquela madrugada de 24 de agosto marcou o início de um calvário que duraria quase 20 dias. Ao longo das semanas seguintes, Dionisia e os familiares perambularam por delegacias de Caracas e foram sete vezes ao necrotério – todas em vão.

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A família, então, relatou o desaparecimento nas redes sociais, e a notícia não tardou a aparecer. Um comentário no Facebook indicou que José Luis Rodríguez Vallenilla fora assassinado próximo à paróquia de Santa Rosalía, no bairro de Prado de María, região central da cidade. Ele dirigia a moto que usava para fazer entregas quando foi alvejado por tiros na cabeça. Vallenilla tinha 40 anos e deixou sete filhos.

O crime, cometido sem motivação clara, entrou para as estatísticas nefastas da insegurança na capital venezuelana. Em 2016, por exemplo, a taxa de homicídios na cidade foi de 140 para cada 100 mil habitantes, segundo o Observatório Venezuelano de Violência (OVV). No mesmo ano, o Brasil registrou 29,9 mortes a cada 100 mil pessoas, de acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Números como esse justificam o fato de Caracas ser considerada a capital mais violenta do mundo. O título foi concedido pelo ranking global de violência urbana, publicado pelo Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal (CCSPJP), uma organização mexicana dedicada ao tema. 

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A lista, divulgada anualmente, analisa os dados de cidades com mais de 300 mil habitantes e é encabeçada por Los Cabos, localizada no sul do México. Caracas vem em segundo lugar e é a primeira capital a aparecer no levantamento. Em 2017, a pesquisa apontou 3.387 mortes no chamado Distrito Metropolitano de Caracas – formado pelos municípios Libertador del Distrito Capital, Baruta, Chacao, El Hatillo e Sucre. Juntos, eles possuem cerca de 3 milhões de habitantes. 

Jornalista é atingida por jato d’água em um protesto em maio de 2017 

Além de conviver com uma média superior a nove assassinatos por dia, os caraquenhos lidam com a incompetência das autoridades de segurança. Os trabalhos investigativos da polícia local costumam ser demorados e, via de regra, inconclusivos. No caso de Vallenilla, por exemplo, o Corpo de Investigações Científicas, Penais e Criminais (CICPC) não dispunha de nenhuma ocorrência sobre o crime. Já o morgue municipal havia perdido o documento que registrava o óbito do entregador – daí o fato de não acharem o corpo. O mistério só foi esclarecido em 8 de setembro, após as informações trazidas pela postagem da internet. 

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A demora na resolução dos crimes faz com que os moradores sequer busquem seus direitos. “Cerca de 80% das vítimas de sequestro e roubo não denunciam os crimes à polícia”, conta o criminologista Freddy Crespo, professor da Universidad de Los Andes (ULA), localizada na cidade venezuelana de Mérida, e ex-membro da OVV. Esse clima de insegurança afeta a rotina da cidade. Quase todo o comércio fecha as portas antes do entardecer. Quem pega a estrada à noite evita fazer paradas, especialmente na Troncal 9, uma das principais rodovias da Venezuela. A estrada é um foco de roubos de veículo, estupros e assassinatos. De modo geral, poucas pessoas se arriscam a andar sozinhas depois das 19 horas. Nesse horário, a maioria dos caraquenhos já está em casa – e, durante a madrugada, é preciso ter um bom motivo para sair às ruas. 

“Existe um toque de recolher silencioso. Ninguém estabeleceu, mas é um acordo tácito”, explica uma funcionária pública de 59 anos, que preferiu não se identificar por medo de sofrer represálias do governo Maduro – notabilizado por reprimir e perseguir opositores políticos. Ela reside em Libertador del Distrito Capital e trabalha no centro, uma das regiões com maior incidência de crimes.

“No dia a dia, tentamos evitar nossa exposição. Se está tarde e você ainda não chegou em casa, tem que ficar onde está.” O temor constante, seja da violência ou do regime ditatorial, é apenas mais um ingrediente da rotina de caos que se estabeleceu em Caracas nos últimos anos. 

 Miséria em qualquer canto 

Na prática, Caracas tem problemas em todos os setores. A saúde é um exemplo disso. O desabastecimento das farmácias é quase completo. A falta de remédios retrovirais prejudica os portadores de HIV, que precisam da medicação para não sucumbir à enfermidade. Buscar atendimento em hospitais públicos também é um desafio. Faltam leitos e médicos na maior parte dos postos de atendimento. Pagar por uma consulta particular é quase uma utopia para a maioria da população.

Quem enfrenta quadros mais graves, como os pacientes com câncer, acaba apelando para o auxílio sobrenatural dos bruxos. Eles realizam uma espécie de medicina alternativa, com o uso de velas e toque das mãos. Os curandeiros cobram cerca de US$ 1 pelas chamadas “consultas espirituais”. Na rede particular, os procedimentos cirúrgicos custam milhares de dólares. Diante desse cenário, epidemias de doenças como sarampo, sífilis e tuberculose começam a se alastrar pela cidade.  

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Enfermeira atende menina em sala de quimioterapia de hospital em Caracas 

Os serviços públicos, de modo geral, são deficitários – fruto do esfacelamento do estado venezuelano. Sem manutenção, a oferta de luz, telefone e internet é constantemente interrompida. Uma das poucas áreas que fogem à regra é o setor de publicidade do governo. Há inúmeros pôsteres de Nicolas Maduro e do ex-presidente Hugo Chávez, falecido em 2013, estampados pelas esquinas de Caracas. A propaganda da chamada ditadura chavista divide espaço com as pichações – muitas delas, aliás, trazem a sigla S.O.S e pedidos de socorro em face da situação da cidade. 

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Se sobra ideologia, falta comida nas gôndolas dos supermercados. Os moradores de Caracas chegam a enfrentar mais de cinco horas de espera para comprar alimentos. Às vezes, os estoques acabam antes que todos tenham conseguido entrar nos estabelecimentos, gerando discussões e agressões físicas nas filas. Em janeiro, a ONG venezuelana Provea, dedicada à defesa dos direitos humanos, visitou comércios locais e conversou com consumidores. A pesquisa descobriu que muitos deles compram comida de cachorro e carne estragada para matar a fome. 

A pobreza é vista em todo canto. “Basta sair de casa para encontrar pessoas de todas as idades vendendo objetos usados ou grupos vasculhando as lixeiras e comendo dos sacos de lixo dos restaurantes. Do mesmo modo, roubos de todo tipo – incluindo celulares, lâmpadas, e até água de caixas d’água – tornaram-se cenas comuns. 

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Ainda que a Venezuela seja apontada como uma das maiores exportadoras de cocaína do mundo, a violência em Caracas não tem relação apenas com o tráfico de drogas. “Vivemos uma violência generalizada, presente em todos os lugares. Mas há um tipo de violência mais subjetiva e ameaçadora, que é a alteração do ritmo de vida em sociedade”, explica o professor Freddy Crespo. 

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Segundo ele, a Venezuela está reconfigurando seu modo de vida – para pior, claro. Nesse novo estilo, o país deve chegar ao final de 2018 como o mais miserável do mundo, superando nações como Iêmen e República Democrática do Congo. A estimativa é da consultoria de pesquisas Focus Economics , que leva em conta as taxas de inflação e de desemprego para traçar a previsão. 

A inflação venezuelana está estimada em mais de 488.865% nos 12 meses encerrados em setembro. Mas este índice deverá saltar para a casa de um 1.300.000% até o final de dezembro, de acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Já o desemprego, também segundo o FMI, atinge cerca de 30% da população e deve evoluir para 37% até 2022. “Chegamos num estado em que não há garantias e as leis são quebradas com facilidade. Diante disso, os indivíduos começam a viver de acordo com sua própria moral”, explica Crespo. “A violência está se tornando apenas uma forma natural de se relacionar.” 

 Começo do fim 

 A violência em Caracas não começou com o colapso do chavismo. O problema apenas tornou-se mais evidente agora, por conta da miséria na Venezuela. “Isso é resultado de um processo histórico que remonta à colonização”, pontua Crespo. As questões políticas, aliás, sempre estiveram atreladas ao tema. Um exemplo foi uma manifestação ocorrida em fevereiro de 1989. Conhecido como “Caracazo”, o ato lutava contra o liberalismo e o aumento abusivo de preços, impetrado pelo então presidente Carlos Andrés Perez. O episódio foi marcado por um confronto entre manifestantes e policiais, resultando em mais de 3 mil mortos – dado jamais confirmado pelo governo da época. 

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Forças policiais reprimem protesto de oposicionistas ao ditador Nicolás Maduro 

O quadro atual, porém, foi estimulado pela derrocada econômica do país. Quando assumiu a Venezuela, em 1999, Hugo Chávez adotou uma política que privilegiava a extração de petróleo – principal riqueza nacional – em detrimento da indústria e da agricultura. A exportação dos barris chegou a representar 96% da receita nacional. Os petrodólares venezuelanos foram impulsionados pelo período de alta no valor da matéria-prima no mercado internacional. Com esse dinheiro, a Venezuela importava os bens que não produzia no mercado interno. 

A queda acentuada no preço do petróleo, ocorrida a partir de 2014, quebrou a lógica econômica do país. Como saída, a casa da moeda venezuelana passou a imprimir dinheiro para pagar a dívida externa, iniciando o ciclo de hiperinflação que parece não ter mais fim. 

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Além disso, o regime socialista de Chávez e Maduro bateu de frente com os Estados Unidos – principal comprador do petróleo venezuelano. Os norte-americanos, acompanhados pela União Europeia, comandaram uma série de embargos ao país, dificultando a negociação da dívida externa e a venda do petróleo, além da própria importação de mantimentos. 

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O custo de importação faz os produtos no país serem extremamente caros – um quilo de frango, nos primeiros meses do ano, valia um mês de salário de um trabalhador comum. Assim, a classe média foi extinta e aqueles que eram pobres foram arrastados à falência. O governo utiliza medidas inócuas para manter o poder de compra dos trabalhadores em meio ao quadro de hiperinflação: somente neste ano, Maduro aumentou o salário mínimo 35 vezes. ï»¿

Com os atuais 180 mil bolívares – equivalentes a pouco mais de 18 dólares – era possível comprar, na última semana de setembro, um quilo de queijo, um pacote de salsichas, uma garrafa de suco, um pacote de pão de sanduíche, quatro pastas de dente, um litro de leite, um quilo de peixe e as passagens de ônibus para o mês. E nada mais. Para ajudar no orçamento, o governo conta com as chamadas “Clap”, a sigla para Comitês Locais de Abastecimento e Produção, que distribuem caixas de alimentos à população. 

Ainda assim, os venezuelanos perderam, em média, 11 quilos no último ano. Entre as crianças, sete em cada dez apresenta má nutrição. Os dados são da ONG Fundação Cáritas e da Pesquisa Nacional de Condições de Vida da População Venezuelana (Encovi, na sigla original). Não raro, há registros de óbitos de bebês e crianças, porém as ocorrências são subnotificadas. O regime de Maduro dificulta a divulgação de dados sobre saúde e segurança. Com esse cenário – e sem perspectiva de mudança –, os caraquenhos mergulharam numa crise identitária, econômica e social. 

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Há protestos quase diários, ainda que muitos atos reúnam apenas uma dezena de insatisfeitos. Isso porque a polícia funciona bem quando o assunto é intimidar manifestações. O efetivo torna-se volumoso e, via de regra, age violentamente. Em 2017, imagens de embates entre o grupo antigovernista La Resistencia e a polícia local circularam o mundo. 

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Os manifestantes foram às ruas de Caracas como forma de oposição à nova constituição promulgada arbitrariamente por Maduro. Formado por jovens, em maior parte, o La Resistencia encontrou no confronto uma forma de reagir ao governo ditatorial. Eles enfrentaram a polícia com pedras e coquetéis Molotov, além de lançarem sacos com fezes contra os soldados. A polícia reagiu atirando balas de borracha e gás lacrimogênio na multidão. O confronto resultou em pelo menos 90 mortes. 

“Pedimos eleições limpas, que respeitem os resultados. Também queremos justiça e que eles paguem por todos os danos causados à Venezuela”, afirma a designer gráfica Andreína McGuire. Embora não seja ligada a nenhum grupo, ela foi às ruas para protestar e acabou ferida nas costas pela polícia durante uma manifestação em abril deste ano. “Algumas pessoas, desesperadas devido ao gás, se jogaram no rio Guaire [destino principal do esgoto de Caracas]. Eu não enxergava nada, até que o som dos tiros e das bombas se aproximou e senti que me acertaram.” 

Assim como em outros países, a violência policial não acontece somente nos atos repressivos. Em julho, 43,5% dos crimes registrados em Caracas foram cometidos por funcionários das agências de segurança, de acordo com o OVV. O roubo representou 15% dessas incidências. Até setembro, o Monitor de Vítimas – uma iniciativa de contagem de assassinatos mantida por jornalistas locais – havia apurado 231 execuções comandadas por órgãos policiais na região metropolitana de Caracas. 

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Como o governo não disponibiliza esses dados, os jornalistas visitam hospitais e necrotérios para fazer uma contagem extraoficial. Por meio dos testemunhos das vítimas, eles descobriram como a polícia age. Reunidos em grupos de 15 integrantes, os policiais invadem casas sem ordem judicial e atiram à queima-roupa, geralmente no peito ou na cabeça. Depois, eles simulam um confronto, lançando disparos aleatórios contra a residência – assim, garantem o álibi de que agiram em legítima defesa. 

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Muitas testemunhas revelam que, como ato final, os policiais se apropriam de pertences como celulares e eletrodomésticos. Além das mortes e dos furtos, a polícia caraquenha é suspeita de cometer uma série de violações aos direitos humanos da população. Em 2018, as ONGs Human Rights Watch (HRW) e Fórum Penal divulgaram um relatório que indicava o modus operandi da força policial. Além de gás lacrimogêneo, jatos d'água e armas de ar comprimido, os policiais recheavam as balas de borracha com bolas de gude, estilhaços de vidro e parafusos. 

O mesmo relatório ainda revela casos de tortura em centros de detenção. Neles, adolescentes e adultos foram eletrocutados, sofreram espancamentos, asfixia e abusos sexuais. As pesquisas e levantamentos não deixam claro se o fator político está relacionado a esses procedimentos. 

 Onda de migrações 

 A dificuldade de sobrevivência na Venezuela resultou na maior crise migratória da América Latina. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que, desde 2014, mais de 2,3 milhões de venezuelanos deixaram o país. Esse número tende a ser ainda maior, já que muitas pessoas não registram sua saída oficialmente. Sem dinheiro para emitir passaportes e comprar passagens, centenas deixam o país a pé, carregando mochilas ou somente a roupa do corpo para fixar residência em países como Colômbia, Equador e Brasil. 

Migrantes venezuelanos aguardam autorização para entrar no Equador 

Aqueles que podem optar pelos documentos enfrentam a lentidão dos órgãos do governo. A jornalista caraquenha Alessandra Perdomo e o marido só conseguiram sair da Venezuela depois de esperar quase um ano pelo passaporte da filha. Isso porque as instituições lidam com problemas que vão desde a falta de funcionários até a escassez de papel. Há dias em que os postos de emissão de passaporte não abrem, pois simplesmente não conseguem imprimir documentos. 

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O casal vendeu bens e contou com a ajuda de amigos e do pai de Alessandra – que foi morar no Equador – para juntar dinheiro e recomeçar a vida. Jornalista com 15 anos de experiência na área, ela agora trabalha como vendedora em uma loja no centro de Buenos Aires, na Argentina. “Sabíamos que emigrar nessas circunstâncias nos obrigava a atuar em outras áreas. Muitas vezes, sinto que esta não é a minha vida”. 

O objetivo da mudança é também ajudar aqueles que não conseguiram ou não quiseram deixar Caracas, como a mãe, as irmãs e os sogros da jornalista. “Saímos porque não há mais vida normal. As imagens dos venezuelanos revirando o lixo para comer são cotidianas e nos golpeiam a cara”, conta Alessandra. “Quando me perguntam por que os venezuelanos não forçam a saída de Maduro, digo que a maioria deles está ocupada demais tentando sobreviver. A impunidade reina e todos se calam. O medo é o único que não te deixa só.”