Manifestações em 26 de julho marcaram 100 dias dos protestos na Nicarágua| Foto:

Hector Saballos, membro do movimento estudantil clandestino, senta-se à mesa, em um abrigo, planejando como entregar arroz, feijão e remédios para amigos que estão escondidos. Suas botas estão manchadas de sangue e seu dedo está quebrado – resultado de um tiroteio recente. Ele está preocupado com sua namorada, que está no hospital se recuperando de ferimentos de tiro.

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Poucos meses atrás, Saballos, 29, estudava engenharia mecânica. Quando o governo de Daniel Ortega anunciou mudanças no sistema de seguridade social, desencadeando protestos em todo o país, Saballos se juntou às marchas. Quando as forças de segurança começaram a matar os manifestantes, ele participou das barricadas, lutando com morteiros, armas e pedras.  Agora ele, é um homem procurado.

"Eu não tinha preparação para isso", contou. "Eu não tenho treinamento militar ou tático. Eu cresci em uma fazenda, então eu sei como usar uma arma. Mas Ortega está destruindo os direitos humanos neste país. Ele está ignorando a separação dos poderes governamentais. Podemos perdoar muito o que ele fez, mas não podemos perdoá-lo por matar seu próprio povo".

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Estudantes como ele estão no centro do movimento que se opõe a Ortega, que está no cargo há 11 anos e foi reeleito pela última vez em 2016. Nos últimos anos, Ortega tem se tornado cada vez mais autoritário, punindo aqueles que falam contra ele e reprimindo protestos. Mais de 300 pessoas foram mortas desde o início das manifestações, em abril, muitas delas jovens, segundo grupos de direitos humanos.

Os estudantes têm sido importantes na política nicaraguense há décadas. Campi universitários atuaram como centros de ativismo durante a Revolução Sandinista que triunfou em 1979, expulsando o ditador Anastasio Somoza e levando Ortega e seus companheiros ao poder. Ortega não conseguiu se reeleger em 1990 e retornou à presidência em 2007.

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Até recentemente, no entanto, os estudantes não ocupavam o centro do palco em movimentos de oposição, embora às vezes se envolvessem em questões como o meio ambiente.  "Eu achava que eles eram apenas millennials que se preocupavam principalmente com videogames e viviam suas vidas online", disse Marie Antonia Bermudez, professora de literatura da Universidade da América Central (UCA). "Mas eu estava errada".

Com os partidos de oposição enfraquecidos e divididos, os estudantes assumiram um papel de liderança nos protestos. Em abril, eles começaram a invadir as universidades, construindo barricadas para combater a polícia e as milícias pró-governo. Recentemente as forças militares se ocuparam os campi, mas os estudantes alcançaram um status icônico entre muitos nicaraguenses. CD’s com músicas como "Gracias, estudiantes" podem ser comprados nos mercados locais. O grafiti nas ruas de Manágua elogia a coragem dos jovens manifestantes, que exigem a renúncia de Ortega e a realização de eleições antecipadas.

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O ditador, por sua vez, afirma que seus oponentes políticos e cartéis de drogas estão por trás dos combates e insiste que permanecerá no cargo até as eleições de 2021. Grupos internacionais e locais de direitos humanos atribuem a maior parte da violência às forças de segurança do governo e seus aliados. 

Mudança de vida

Para os estudantes, a crise que assola o país significou uma interrupção completa de suas vidas. A maioria das universidades está fechada há três meses. Bolsas de estudo não foram pagas. Muitos estudantes voltaram para as casas de suas famílias no campo porque não têm dinheiro, e, com a economia em uma espiral descendente, há poucas chances de encontrar trabalho. Outros fugiram do país.

Vinicio Gonzalez, 24 anos, conhecido no movimento estudantil como "Yankee" por causa de sua pele clara, era um estudante de dança na UCA antes de se juntar aos manifestantes. Ele havia planejado se apresentar em um festival de dança folclórica na Costa Rica neste verão, mas, em vez disso, está se escondendo com Saballos. "Pedras não podem fazer nada contra armas", disse ele, em lágrimas. "Mas eu tenho que assumir esses riscos. Nossos amigos foram mortos e nossos direitos foram retirados".

Paola coloca munições em cima do caixão de seu irmão Gerald José Vasquez Lopez, 20. Ele foi morto durante um confronto com a polícia e paramilitares pró-Ortega na Universidade Nacional Autônoma da Nicarágua em Manágua, em 14 de julho

Kim Angeles, 23 anos, tinha uma bolsa integral para a UCA e estudava sociologia. Ela agora passa a maior parte do seu tempo em um local seguro e diz a seus pais que está indo à igreja quando, na verdade, está participando dos protestos.  "Meu maior medo é ser estuprada", disse. "Somos apenas estudantes. Não sabemos como lutar".

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Neste país dividido, a situação de Angeles é complicada pelo apoio do pai e do tio a Ortega. "Meu pai acha que os estudantes da resistência deveriam ser mortos", contou.

Regis Gonzales, 20 anos, é estudante de medicina e ajudou a tratar alunos feridos durante um protesto. Ele contou que foi preso e interrogado por 12 horas pela polícia.  "Depois que eles me questionaram, começaram a escrever em um pedaço de papel. Eu olhei para baixo para ver o que eles estavam escrevendo. Eles tinham escrito 'terrorista' no meu nome. Fiquei chocado", disse.

Ele foi libertado e continuou a participar de protestos. Agora, segundo Gonzales, a polícia emitiu um mandado de prisão contra ele, acusando-o de ser terrorista. Ele está morando em um refúgio. "Vou continuar a lutar contra a opressão política", afirma. "Não vamos esquecer uma única gota de sangue derramada pelos nossos amigos que foram mortos".

Professores também sofrem

Os professores também estão enfrentando dificuldades. Muitos não foram pagos por três meses, desde que as aulas foram suspensas, e não podem ir a seus escritórios ou fazer pesquisas na biblioteca.  "Estou vivendo de economias", contou Bermudez, a professora de literatura. "Estou indo a funerais dos meus alunos. Meu departamento inteiro fugiu para a Costa Rica".

Sergio Ramirez, vencedor do Prêmio Cervantes 2017, o mais prestigiado prêmio literário do mundo de língua espanhola, disse que grupos estudantis pró-Ortega reprimiram a investigação intelectual e tornaram perigosas as opiniões de oposição nos campi.

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"Somoza nunca conseguiu controlar as universidades", disse Ramirez, que serviu como vice-presidente de Ortega de 1985 a 1990, mas agora critica abertamente sua administração. "Ortega foi capaz de controlá-los."

Saballos disse que agências governamentais dão bolsas de estudo, o que faz com que muitos estudantes tenham medo de falar. "Eles sabem que se disserem algo contra Ortega, não receberão bolsas de estudos", contou.

Bermúdez disse que os estudantes operam de maneira diferente da sua geração durante a insurreição sandinista, que foi inspirada por líderes da revolução cubana como Fidel Castro e Che Guevara. "Eles vêem nossa geração de sandinistas como fracassados. Eles não querem criar grandes líderes como Che ou Fidel", disse ela. "Eles operam mais como um grupo. Costumávamos dizer ‘liberdade ou morte’. Mas eles dizem ‘seja livre ... e viva’".