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Artigo sobre Mandela

Um grande líder, de um país único

Praça Mandela em Sandton City: político sul-africano se tornou um paladino da liberdade e superou o desejo de revanche | Albari Rosa/Agência de Notícias Gazeta do Povo
Praça Mandela em Sandton City: político sul-africano se tornou um paladino da liberdade e superou o desejo de revanche (Foto: Albari Rosa/Agência de Notícias Gazeta do Povo)

A África do Sul é um país único. Nela se encontram elementos geográficos e humanos que não existem em outro lugar do planeta. Animais típicos da savana africana, como leões e elefantes convivem no litoral com uma fauna subpolar, como pinguins e focas. Essa inusitada combinação é explicada pela localização do país no extremo sul do continente africano, onde a gelada Corrente de Benguela traz os animais de origem polar para as praias e falésias sul-africanas, onde convivem com a flora e fauna africana mais tradicional.

Também entre os sul-africanos há uma grande variedade. Africanos de várias origens – indianos, malaios, ingleses, holandeses, alemães, franceses, portugueses, judeus e chineses – tentam conviver de uma forma justa e democrática, apesar das grandes diferenças étnicas, religiosas, linguísticas e sociais que tendem a separá-los. A construção dessa grande nação sul-africana que busca um futuro em comum é, no entanto, marcada por dor, preconceito, injustiça, discriminação e tristeza.

Os portugueses passaram por lá no final do século 15, mas a presença permanente de europeus se iniciou em 1652, quando a Companhia Holandesa das Índias Orientais estabeleceu uma colônia nas proximidades do Cabo da Boa Esperança, onde havia um bom porto e terras para cultivo, tendo em vista a necessidade de abastecimento para as frotas holandesas na rota entre a Holanda e a Ásia Meridional.

Apesar de pertencer aos holandeses, a Colônia do Cabo possuía um espaço bastante amplo de autonomia administrativa. Essa grande liberdade, associada à dureza da vida na África, possibilitou aos africâneres – descendentes dos primeiros colonos holandeses, franceses e alemães – a criação de uma identidade própria, que resultaria num forte nacionalismo. Eles não eram mais holandeses ou europeus, eram uma nação africana, branca e protestante.

Terra Prometida

A Igreja Reformada Holandesa teve um papel importante nesse processo, identificando os africâneres com Israel do Velho Testamento, em sua busca pela Terra Prometida. Os africâneres estavam também imbuídos de uma missão civilizadora na África, apesar de terem se africanizado intensamente, a ponto de serem considerados quase uma tribo.

Até as Guerras Napoleônicas, a Colônia do Cabo teve uma vida relativamente tranquila, mas pouco próspera e nada promissora. A situação estratégica do Cabo da Boa Esperança em relação ao império colonial britânico na Índia, na Ásia Oriental e na Austrália fez com que os ingleses ocupassem a colônia em 1795 e ficassem com ela definitivamente depois do Congresso de Viena (1815).

Os africâneres não gostaram nada dos novos donos do país. Os ingleses eram urbanizados, dominavam o comércio, as finanças, a mineração e a manufatura. Os africâneres pouco educados não puderam competir e foram afastados para suas pequenas fazendas. A situação piorou quando a escravidão de africanos foi abolida em 1834.

Agora, eles precisavam pagar para ter uma mão de obra que os ajudasse nas fazendas. Essa situação intermediária dos africâneres, de não serem os grandes proprietários de terras, minas e fábricas na África do Sul – como os ingleses –, e também de não serem a mão de obra mais barata – como os negros e os mestiços –, pode ser considerada uma das causas do sistema de Apartheid.

Durante todo o restante do século 19, os africâneres buscaram um caminho à parte dos ingleses. Mas isso não foi possível: as terras sul-africanas eram muito ricas em minérios, como ouro, ferro e carvão, além de possuir boas pastagens, e a Inglaterra tinha interesses demais no continente para deixar os sul-africanos independentes. O confronto entre os dois grupos somente cessou, em parte, com as duas guerras entre ingleses e africâneres, quando estes, derrotados, ainda que contra sua vontade, se submeteram aos primeiros.

Dominados os rebeldes, a Grã-Bretanha direcionou a administração colonial para criar uma federação que congregasse as províncias do Cabo, de Natal, de Transvaal e o Estado Livre de Orange e que pudesse assumir logo um governo autônomo, de acordo com os Estatutos de Westminster. Daí se originou o atual Estado sul-africano, cuja independência foi oficializada em 1910.

Passaporte

O novo país independente obteve reconhecimento internacional como os outros três domínios britânicos brancos: Canadá, Austrália e Nova Zelândia. O direito de voto, apesar da visão liberal britânica contrária à segregação, ficou restrito à população branca. O inglês e o holandês se tornaram línguas oficiais, sendo o holandês logo substituído pela língua africâner (em decorrência do nacionalismo africâner). Em seguida, vieram leis que mais e mais excluíam a população não europeia do direito ao voto e à propriedade, sendo essa população obrigada a portar um passaporte para circular pelo país.

Terminada a Segunda Guerra Mundial, da qual o país participou ao lado da Inglaterra, a África do Sul contava com uma ótima reputação no cenário internacional. Mas, internamente, houve um retrocesso e a elite africâner, silenciada durante a guerra por suas simpatias pelo nazismo, ascendeu ao poder.

O Partido Nacional, que venceu as eleições de 1948, representava principalmente os interesses da minoria africâner, empobrecida e espremida entre os ricos sul-africanos de língua inglesa e a grande massa da população negra e mestiça que ameaçava roubar seus empregos.

Embora tenha sido aprovada em 1913 uma lei que restringia o acesso dos negros à propriedade da terra, o sistema de Apartheid foi consolidado em 1948, impedindo que negros, mestiços e indianos pudessem ter direito à participação política, à propriedade da terra e às escolhas de onde morar e onde trabalhar. Esse sistema seria liquidado somente em 1994.

Superioridade

A ideia de segregação racial na África do Sul é anterior a 1948 e suas raízes se estendem até o século 19. Segundo alguns historiadores, a ideologia da superioridade branca e da discriminação racial era uma exigência do sistema de exploração agrária a que se dedicavam os africâneres, que praticavam uma agricultura atrasada e pouco lucrativa, com mão de obra escrava ou semisservil, em comparação com a agricultura intensiva que a burguesia inglesa desenvolvia nas províncias do Cabo e de Natal, com trabalhadores assalariados malpagos, negros e indianos.

Para os ingleses, mais liberais e pragmáticos, a escravidão era um obstáculo à formação do mercado consumidor, mas eles não deixaram de estabelecer barreiras rígidas para a ascensão social e econômica dos negros e, em menor medida, dos mestiços e indianos sul-africanos.

Os africâneres tentaram resistir ao domínio britânico no sul da África, ocasionalmente buscando apoio dos portugueses de Moçambique ou dos alemães da Namíbia, mas acabaram por sucumbir aos ingleses depois da Guerra dos Boeres. Suas repúblicas passaram a fazer parte da União Sul-Africana, dominada pelo Reino Unido.

Controlada a situação, ao iniciar a exploração das minas de ouro e diamantes, os grandes capitalistas europeus tiveram de recorrer aos operários brancos com alguma especialização e preparo intelectual. Essas pessoas, em sua maioria ex-fazendeiros africâneres que haviam perdido suas propriedades e capital em decorrência da Guerra dos Boeres, mas também imigrantes europeus (alemães e judeus) atraídos pela corrida do ouro, fazia exigências e reivindicações trabalhistas, pois conheciam o funcionamento do capitalismo industrial britânico.

Os ingleses manipularam habilmente essa situação, prometendo vantagens aos trabalhadores brancos desde que se tornassem cúmplices da exploração da mão de obra negra. Os estratos intermediários brancos se tornaram assim os maiores interessados na segregação dos negros, o que lhes garantia o acesso a funções intermediárias mais bem-remuneradas.

Obscura

No entanto, a ideologia do Apartheid nunca ficou muito clara. Havia aqueles que defendiam uma tendência, mais visionária, que pretendia a total separação entre brancos e negros, inclusive com leis que proibiam os casamentos inter-raciais, muitas vezes desrespeitadas; esperavam que, com a modernização e mecanização de setores econômicos, os brancos poderiam dar conta da necessidade de mão de obra que a economia sul-africana apresentava. Outros, mais pragmáticos, queriam garantir o acesso à mão de obra negra – como os grandes fazendeiros e industriais que não estavam dispostos a ceder seus interesses econômicos por uma "utopia branca". O que eles queriam do governo era a garantia de que teriam acesso a uma força de trabalho negra, obediente e à qual pagariam pouco. Essa última tendência foi a mais favorecida.

Bantustões

Para resolver a questão, o governo começou a organizar o sistema de bantustões. Os bantustões seriam organizados em regiões não muito distantes dos grandes centros industriais do país, principalmente em sua parte oriental. Não poderiam ficar muito longe, pois os trabalhadores teriam de se deslocar todos os dias para as cidades e voltar de noite para casa.

Cada grupo étnico teria seu bantustão, com certa autonomia e independência. Isso possibilitava ao governo sul-africano não dar os direitos de cidadania para toda a população já que, teoricamente, os habitantes dos bantustões eram estrangeiros.

Alguns deles chegaram a ter sua independência declarada, como o Transkei e o Ciskei, mas nenhum país reconheceu esse fato e estabeleceu relações diplomáticas com eles. Outro fator importante foi o fato de que comunidades negras de classe média com instrução superior já habitavam as cidades sul-africanas e não houve como removê-las. Também a propriedade da terra por fazendeiros negros era um fato, em especial na Província do Cabo, e não houve como superar esse entrave jurídico.

Antirracista

O estabelecimento do Apartheid foi acompanhado, desde o início, por uma luta antirracista, da qual tomaram parte defensores dos direitos civis, principalmente negros, mas também brancos. Muitos judeus alemães que haviam imigrado para a África do Sul nos anos 1930 e 1940, fugindo do nazismo, passaram a defender os direitos dos negros e de outras minorias em relação à cidadania plena, aos direitos civis e à propriedade.

Pastores e missionários protestantes também atuaram a favor de negros e mestiços. Já em 1912, com a fundação do Congresso Nacional Africano (CNA), houve a tendência de questionar o segregacionismo. Era uma resistência não violenta, por meio de greves, da qual participavam não apenas negros, mas também brancos pobres, mestiços e indianos, que também não tinham acesso à cidadania plena e a condições dignas de sobrevivência.

Sharpeville

Em 1960, com o massacre de Sharpeville, a luta antirracista conciliadora assumiu uma postura radical. O CNA formou uma milícia armada, o Umkhonto we Sizwe ["A Lança da Nação"], da qual Nelson Mandela se tornou líder. Logo a seguir, em 1963, Mandela é preso e condenado à prisão perpétua por terrorismo. Apesar de preso, Mandela conseguiu se manter como líder do movimento de contestação ao regime do Apartheid.

A partir dos anos 1960, o governo sul-africano colocou em prática uma política protecionista para criar uma forte infraestrutura no setor de fornecimento de energia (centrais nucleares), transportes (ferrovias, rodovias, portos e aeroportos) e promover o desenvolvimento de um grande polo industrial preparado para atender o mercado consumidor de toda a África Meridional.

O grande sucesso nesse empreendimento e o clima da Guerra Fria consolidaram o Apartheid. A África do Sul se colocou como aliada incontestável dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha diante da ameaça comunista soviética e atuou militarmente contra os movimentos e guerrilhas de extrema-esquerda no sul da África.

A partir dos anos 1980, o sistema segregacionista foi erodido aos poucos, internamente, pelo movimento de liberdade civil dos negros, liderado pelo CNA e por parte do empresariado e da população branca, liberal e contrária ao Apartheid.

As pressões internacionais e os embargos econômicos dos principais parceiros da África do Sul, como a Inglaterra, a Alemanha e os Estados Unidos, cobraram seu preço. Economicamente, a rica África do Sul estava se inviabilizando. Manter um mercado consumidor de quase 30 milhões de pessoas segregado, impossibilitado de produzir e de comprar em função da cor da pele, era algo no mínimo suicida, dentro da perspectiva meramente capitalista.

Em 1990, teve início a liquidação do Apartheid, com a legalização oficial do CNA e dos outros partidos contrários à segregação racial e com a libertação do líder Nelson Mandela. A isso se seguiu o referendo de 1993, do qual participou apenas o eleitorado branco e que foi favorável ao desmantelamento negociado do sistema de segregação.

O primeiro

A eleição presidencial de 1994 levaram Mandela ao poder, o primeiro presidente negro na história da África do Sul. O governo de Mandela se revelou uma tentativa de buscar a superação do passado. Uma característica marcante, pois Mandela, nos anos 1960, era líder de um grupo armado e, nos anos 1980, foi se transformando em um paladino do pacifismo.

No início dos anos 1990, ele já estava disposto a buscar um ponto de equilíbrio entre as diversas comunidades sul-africanas, tendo em vista a construção de um futuro de paz e bem-estar social.

Em função disso, Madiba, modo carinhoso como os sul-africanos se referem a Nelson Mandela, já havia sido laureado com o Prêmio Nobel da Paz em 1993, junto com o então presidente sul-africano Frederik de Klerk.

Logo após a tomada de posse, Mandela instituiu uma comissão para a verdade e a reconciliação, perante a qual os indivíduos envolvidos com o Apartheid, confessavam sua participação no regime segregacionista e recebiam perdão. Apesar das ótimas intenções, a comissão acabou por gerar mais controvérsia do que reconciliar os diferentes segmentos do povo sul-africano.

Mesmo com as grandes esperanças em relação ao futuro, o governo de Mandela deixou a desejar na política econômica – o desemprego continuou em níveis muito altos, atingindo tanto negros quanto brancos – e se mostrou indiferente ao gravíssimo problema de saúde pública representado pela aids. Estimava-se, nos anos 1990, que cerca de 20% da população do país estaria infectada pelo vírus HIV [o número mais recente da Organização das Nações Unidas, de 2007, diz que 12% da população é soropositiva].

Justo

As tarefas que esperavam por Mandela eram, de fato, hercúleas. As heranças social e política de um passado de injustiça não seria corrigida em apenas um mandato presidencial. Também seus sucessores Thabo Mbeki, presidente por dois mandatos sucessivos, e Jacob Zuma, atual presidente sul-africano, continuam com a tarefa de construir um país mais justo, apesar da crise econômica, da criminalidade e das tensões raciais.

De qualquer forma, Nelson Mandela, como primeiro presidente negro de uma África do Sul democrática, disposto a romper as barreiras raciais, superando o passado e o desejo de revanche, e buscando um futuro de harmonia, unidade, paz e prosperidade para seu povo, ficará para sempre como um exemplo indelével de grande líder político para todas as nações.

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