No centro da confusa reação europeia à crise de refugiados, há um sentimento, em geral não expresso, de que a Europa está “lotada” e que esses sírios desesperados sejam de certo modo um fator de contágio, que deixá-los entrar fará a Europa adquirir algo que manchará seus dedos.

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É muito importante para os europeus se considerarem moradores de uma feliz cidadela de racionalidade. Cada Estado europeu vê a si mesmo como orgânico e completo. O mundo exterior consiste em Estados migrantes não autênticos (Estados Unidos), ditaduras e pobreza.

Essa ideologia de autossatisfação tem sido central para os líderes da Europa e sua visão de mundo. Mas é também de uma safra relativamente nova e fala de uma vontade de não retornar ao tumulto sangrento que há muito definiu a sociedade europeia.

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Dificilmente há um canto da Europa que não tenha sido dilacerado por massacres, fugas de populações inteiras e reassentamentos violentos, todos alimentados por ideologias exatamente tão violentas e niilistas quanto as do Estado Islâmico.

Os europeus adoram imaginar que a ferocidade e a irracionalidade estão de certo modo “muito distantes”, como a Síria —mas se há uma parte do mundo que deveria sentir uma profunda empatia pelas dificuldades dos sírios comuns deveria ser a Europa.

Considere o terreno percorrido pelos refugiados de hoje, ao viajar da Grécia à Alemanha. Nos últimos cem anos, a própria Grécia e o resto dos Bálcãs meridionais passaram por guerra civil, regimes militares e mudanças catastróficas e foram submetidos a tal brutalidade que a paisagem seria quase irreconhecível para um viajante que se deslocasse para o norte há pouco mais de um século.

Esse era um mundo, em muitas áreas, forte e profundamente islâmico. Porém, em uma série de guerras devastadoras antes, durante e depois da Primeira Guerra Mundial, tudo isso mudou. Todos os grupos sofreram, mas somente da Grécia no início da década de 1920 cerca de 500 mil muçulmanos sobreviventes foram expulsos para leste. Quase todos os vestígios da arquitetura islâmica foram destruídos.

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Somente a Albânia, por meio de um laivo de cidadania internacional, e a Bósnia-Herzegovina, que esteve sob o domínio do Império Habsburgo, mantiveram suas populações muçulmanas. Até a década de 1980, as autoridades comunistas na Bulgária expulsavam os muçulmanos (conhecidos como “pomaks”).

Enquanto os refugiados de hoje rumam para a Sérvia, encontram um país que foi eviscerado por duas guerras mundiais. Depois das invasões do Exército Habsburgo em 1914, admite-se que pelo menos a metade de todos os homens sérvios morreram em combate, de fome ou em represálias. A vizinha Bósnia-Herzegovina tornou-se mais uma área de desastre na década de 1990.

Na Hungria, os refugiados de hoje entram em um país totalmente moldado e criado por refugiados. As tristes cenas na estação ferroviária de Keleti, em Budapeste, não poderiam ter acontecido em local mais apropriado. Muitas tragédias da história húngara ocorreram naquele prédio.

Nas duas guerras mundiais, inúmeros trens de soldados condenados partiram sob aplausos. Depois da derrota da Hungria em 1918 e da implosão do Império Habsburgo, do qual ela fora uma parte vital, a estação de Keleti se encheu com milhares de refugiados húngaros que fugiam da limpeza étnica dos vingativos sérvios e romenos. E eles ficaram: apesar do colapso da economia da Europa central depois de 1918, a população permanente de Budapeste cresceu substancialmente porque havia muitos recém-chegados aterrorizados.

Quando os refugiados chegam à Áustria e à Alemanha, eles estão, é claro, em países que um dia conjuraram as mais ferozes e demoníacas ideologias, com o Holocausto pairando sobre tudo.

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Esses países deveriam ser absolutamente simpáticos à sina dos refugiados. Na verdade, a clareza emocional e moral com que Angela Merkel tomou suas decisões deriva disto e contrasta com as hesitações de outros líderes europeus. Enquanto os alemães pretendem receber cerca de 800 mil refugiados, o primeiro-ministro David Cameron, do Reino Unido, concordou em receber um número insignificante, surreal, de 20 mil sírios em cinco anos.

Em 1945, havia cerca de 20 milhões de refugiados europeus vagando, fugindo da perseguição, da destruição de suas casas ou da justiça. A principal história da segunda metade daquela década é como a Europa como um todo encontrou lares para todas essas pessoas (às vezes de maneira trágica, como as que foram empurradas de volta para o leste, para as garras da União Soviética).

A Europa do pós-guerra foi moldada por ondas de migração em uma escala vastamente superior à da crise atual. Em 1947, todos os falantes de alemão foram expulsos da Tchecoslováquia, e em poucas semanas mais de um milhão chegaram somente à zona americana da Alemanha ocupada. Apesar de entrarem em um país principalmente reduzido a ruínas, eles foram assentados em todo o sul da Alemanha.

Em apenas algumas semanas em 1962, cerca de 750 mil a um milhão de europeus chegaram à França depois da independência da Argélia e foram assentados. A imigração de fora da Europa também é comum —considere os milhões de britânicos de ascendência asiática que se mudaram nas décadas de 1960 e 1970, ou os milhões de turcos-alemães.

Movimentos populacionais maciços estão no coração da Europa, seja voluntária ou involuntariamente. As comunidades se adaptam, cicatrizes terríveis são parcialmente curadas, as cidades crescem, crianças nascem, novas técnicas são encontradas.

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A resposta para a atual crise é evidente.

Simon Winder é o autor de “Danubia: A Personal History of Habsburg Europe”.