Zilda Arns, fotograda em 2004: vida dedicada às crianças| Foto: CesarFerrari/ Reuters
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Zilda Arns mede o peso de uma criança: força da pastoral criada por ela estava na inspiração e no trabalho voluntário
Doutora Zilda sendo trans­­portada de barco no Rio Negro para uma das comu­­ni­­da­­des atendidas pela Pastoral da Criança
A médica Zilda Arns Neumann posa em praia do Rio Negro, na cidade de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, tendo ao fundo duas crianças
Zilda Arns: trabalho humanitário reconhecido em todo o mundo
Dona Zilda durante a entrevista com os repórteres-mirins (2003).
Zilda Arns realizando seu trabalho na Pastoral da Criança
Zilda recebe o prêmio da ordem do pinheiro pelo seu brilhante trabalho
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"Ela morreu de uma maneira muito bonita, morreu pela causa em que sempre acreditou." Foi assim que o cardeal dom Paulo Evaristo Arns, arcebispo emérito de São Paulo, reagiu à notícia da morte de sua irmã, a médica pe­­diatra e sanitarista Zilda Arns Neumann, na manhã de ontem. Às 7h30, ainda sem saber que Zilda, 75 anos, havia falecido no ter­­remoto que devastou a capital hai­­tiana, Porto Príncipe, dom Paulo celebrou missa pelas vítimas da tragédia na casa de religiosos onde vive, na Grande São Paulo.

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De acordo com o gestor de Relações Institucionais da Pastoral da Criança, Clóvis Boufleur, Zilda tinha viajado ao Haiti para apresentar os trabalhos da pastoral em uma reunião de bispos haitianos. "Já faz alguns anos que começamos um movimento no sentido de levar a pastoral ao Haiti e esse evento do episcopado era uma oportunidade de acertar a nossa participação", afirmou. Segundo o gestor, esse era o procedimento de costume quando a Pastoral da Criança começava seus trabalhos no exterior. "Primeiro a doutora Zilda visitava o país, e depois havia uma série de reuniões para marcarmos datas. Só então começava a atividade da pastoral", disse.

No Haiti ainda não havia nenhum cronograma pronto para o começo dos trabalhos, e com a morte de Zilda Arns, o planejamento está suspenso. "É uma pena, porque estamos certos de que nossa atuação ajudaria muito na diminuição da mortalidade infantil em um país tão pobre", acrescentou Boufleur. Para ele, Zilda Arns não via sua viagem ao Haiti apenas como promoção de métodos de saúde pública. "Da última vez que conversamos por telefone, antes de viajar, ela me disse que sua presença seria uma missão de paz e de diálogo, já que o Haiti passa por uma situação muito delicada", contou.

Início

O trabalho que, segundo Boufleur, faria tanto bem às crianças do Haiti começou em 1983, em Florestópolis, na Arquidiocese de Londrina – à época comandada pelo atual cardeal-arcebispo de Salvador, dom Geraldo Majella Agnello. A Unicef, agência das Nações Unidas para a infância, procurou dom Paulo Evaristo Arns pedindo que a Igreja no Brasil iniciasse uma experiência para reduzir a mortalidade infantil. "Dom Paulo achou por bem não começar o projeto em sua própria arquidiocese, e por isso me procurou", contou dom Geraldo à Gazeta do Povo. Segundo o cardeal, foi dom Paulo quem serviu de intermediário entre Zilda e a Arquidiocese de Londrina, embora dom Geraldo já conhecesse o trabalho da médica. "Nós escolhemos a paróquia de Florestópolis, que tinha os mesmos limites do município e apresentava índices muito ruins de mortalidade infantil. O Unicef bancou a parte financeira no início, e fomos atrás de mães que pudessem se tornar líderes", recordou o cardeal.

Eunice Vicente Cardoso, que ajudou Zilda Arns a iniciar o projeto em Florestópolis, contou que a médica implantou métodos simples para prevenir a mortalidade infantil. "Ela trouxe a prevenção para evitar as mortes, como aplicação rigorosa de vacinas, aleitamento materno e mais amor e carinho na hora da amamentação, além de uma boa hidratação para crianças com diarreia, porque as crianças morriam muito de desidratação. Tudo isso para salvar vidas", lembrou. Em um ano, a mortalidade infantil em Flores­­tópolis caiu de 127 para 28 crianças a cada mil nascidos vivos. "A partir daí, os bispos de outras cidades do Paraná e outros estados brasileiros se interessaram pela Pas­­toral da Criança e o projeto se ex­­pandiu", acrescentou dom Ge­­raldo.

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Zilda ajudou a montar uma rede nacional com centenas de milhares de voluntários. "Traba­­lho na Pastoral há 22 anos e fui capacitada por ela para me tornar voluntária. O trabalho que ela desenvolveu tinha um objetivo muito forte, de preservar a vida, criando vínculos de amizade, atenção e carinho", contou Maria da Conceição Oliveira Hamester, líder do setor Curitiba-Oeste da pastoral. Ana Aparecida Cano de Lima, voluntária da pastoral no bairro Xaxim, conheceu Zilda quando foi levar algumas crianças para fazer fotos para o jornal da entidade. "Ela sempre ia às festas e eventos que organizávamos e era muito atenciosa com a gente", recordou.

Admiração

A atenção que Zilda Arns dava a Maria da Conceição e outras voluntárias não era privilégio dos membros da Pastoral da Criança. "Quando fiz 70 anos e dei uma festa, ela fez questão de vir, mesmo tendo uma viagem de trabalho para Brasília no mesmo dia. Teve de sair mais cedo, mas também chegou antes", recordou Lygia Maria Gomes de Sá Vianna, colega de escola dos tempos do Divina Providência, em Curitiba – nascida em Forquilhinha (SC), Zilda veio para a capital paranaense ainda criança. "Nós fizemos o que na época se chamava de ginásio. Ela era muito estudiosa; naquela época em que todas éramos jovens, fazíamos bagunça, ela aceitava com bom humor, mas não era muito de fazer farra", disse, acrescentando que participava das reuniões do grupo de amigas sempre que possível. "Ela era mais quietinha, não fazia muita propaganda do seu trabalho na pastoral. Mas todas nós sabíamos o que ela fazia e a admirávamos muito por isso", afirmou Lygia.

O mesmo sentimento ficou entre os que trabalharam com Zilda no Hospital de Crianças César Pernetta, hoje Pequeno Príncipe. Zilda, que se formou em Medicina pela UFPR em 1959, trabalhou no hospital entre 1955 e 1964. A auxiliar de enfermagem Wladyslawa Provessi contou que Zilda se dedicava especialmente às crianças com problemas de nutrição. "Antigamente as famílias não podiam ter tanta participação no tratamento, então ela se oferecia para cuidar das crianças, alimentar, contar histórias. Ela também se preocupava com o que as crianças comeriam depois que fossem embora", disse.

A dedicação de Zilda às crianças, iniciada no César Pernetta, continuaria norteando sua carreira nos anos anteriores à criação da Pastoral da Criança: ela foi diretora de Saúde Materno-Infantil da Secretaria de Estado da Saúde do Pa­­raná e, em 1980, coordenou uma campanha de vacinação contra uma epidemia de poliomielite que começou em União da Vitória. Mas, em 2004, Zilda recebeu uma nova missão da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB): fundar a Pastoral da Pessoa Idosa. Hoje, a entidade está presente em quase todos os estados brasileiros e atende cerca de 100 mil idosos.

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O trabalho de Zilda, que era viúva desde 1978 e deixa quatro filhos e nove netos (a filha mais nova, Silvia, morreu em 2003) foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz por quatro vezes. Não ganhou. Mas, nas palavras do arcebispo de Curitiba, dom Moacyr Vitti, "se aqui ela não o recebeu, com toda certeza no céu receberá da parte de Deus um infinito reconhecimento pela sua digna missão realizada na terra".