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Paulo Briguet

Anatomia do mensalão

 | Ilustração: Gilberto Yamamoto
(Foto: Ilustração: Gilberto Yamamoto)

No último capítulo de Dom Casmurro, o narrador não sabe dizer se a Capitu da Glória já estava dentro da Capitu de Matacavalos. Bentinho tem certeza de que a mulher o traiu; resta saber se a semente da traição existia na menina que ele conheceu e amou na infância. Falta-nos um Machado de Assis – ou um Nelson Rodrigues – para descobrir exatamente quanto do José Dirceu do mensalão já estava dentro do José Dirceu revolucionário. Mas, mesmo sem a sutileza machadiana, mesmo sem a verve rodrigueana, podemos esboçar algumas notas sobre esse fenômeno descortinado em 2005 e julgado agora, sete anos depois.

Em sentido amplo, o mensalão não é uma prática isolada: é um método, uma cultura. Antes que o termo fosse popularizado, a semente do mensalão já era identificável na apologia das ditaduras comunistas. Em geral, as pessoas fogem de Cuba; José Dirceu e outros militantes da esquerda armada fugiram para Cuba. E o que é o regime castrista, senão um mensalão que já dura meio século?

O mensalão stricto sensu acaba de ter sua existência não apenas provada como também julgada e condenada pelo Supremo Tribunal Federal. Mas o mensalão maior – aquele que corrói as almas antes de abrir os cofres – já nascia em 1979, quando Golbery resolveu dividir e enfraquecer a oposição ao regime militar. Havia um mensalão na luta encarniçada contra o Plano Real e as privatizações. Havia um mensalão em cada greve abusiva; em cada invasão de terras produtivas; em cada distorção da doutrina católica pelos teólogos revolucionários; em cada programa escolar envenenado pelas pedagogias submarxistas.

A corrupção é uma exclusividade do partido-príncipe? Claro que não. Os companheiros não inventaram a compra de votos e parlamentares; precedentes desse jogo remontam ao império português, passando pela Velha República e pelo getulismo. Em nossa época, o indescritível governo Sarney esmerou-se na combinação de fisiologia e incompetência. O esquema PC-Collor foi vergonhoso, embora quase pitoresco diante do que se veria depois. O episódio da reeleição lançou muitas sombras no governo de FHC. Mas, com o mensalão, essas práticas foram elevadas à categoria de arte. O que era tática virou estratégia; o que era pontual tentou virar definitivo e engolir a democracia. "Um golpe", na definição do ministro Ayres Britto.

De certo modo, o golpe vingou. Se pensarmos bem, veremos que a lógica do mensalão habita o nosso cotidiano. Trabalhamos cinco meses do ano para pagar impostos: isso é mensalão. Temos índices vergonhosos em saúde, educação e segurança: isso é mensalão. As estatais fazem propaganda de si mesmas na televisão: isso é mensalão. O Estado pai-patrão é um inimigo que se apresenta como aliado: isso é mensalão.

A ditadura sempre começa pela linguagem – e a corrupção também. Palavras como ética, cidadania, república e mercado foram sequestradas e hoje é impossível usá-las no sentido original. A mágoa contra a imprensa ganhou um nome esquerdista: "controle social da mídia". Por sinal, quiseram proibir até mesmo a palavra mensalão.

Não bastasse, temos ainda a face ideológica do mensalão na doutrina politicamente correta, que criminaliza opiniões, sufoca a liberdade dos indivíduos e fabrica supostos consensos inexistentes na vida real.

A condenação dos líderes mensaleiros pelo STF é apenas a primeira batalha de uma guerra infinitamente maior: a luta para vencer o mensalão que invadiu a alma do país. Nunca antes...

O colunista Luís Fernando Verissimo está de férias.

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