A emergência da classe C como uma força de consumo é um acontecimento da maior importância e não se pode atribuí-lo isoladamente a esse ou aquele período nem a essa ou aquela política
O Brasil está encantado com a emergência da classe C e a turma do marketing está salivando como os cachorros de Pavlov com as possibilidades de vender de tudo para esse contingente de 50 milhões de novos consumidores, que parecem ter surgido do nada em pouco mais de uma década.
Para começar, a nova classe emergente já tem uma musa, a Griselda da novela, mais conhecida como Pereirão. Da mesma maneira como a Amelia personificava a mulher submissa, que passava fome ao lado do seu amado, "achava bonito não ter o que comer" e se resignava exclamando "que se há de fazer", o Pereirão é o polo oposto da musa de Mario Lago e Ataulfo Alves: nada de submissão nem resignação. Pereirão é uma mulher moderna e independente que vai à luta com uma chave inglesa na mão e a pergunta na ponta da língua: "vai encarar?" Em uma coisa, ela e Amelia se parecem: nenhuma das duas pensa em luxo ou riqueza. Pereirão ganhou R$ 50 milhões na loteria, mas pinta os cabelos em casa usando produtos que o merchandising deixa bem à vista dos telespectadores/consumidores; e em vez de ingressar nas altas finanças, abriu uma prosaica microempresa de serviços domésticos.
Os estereótipos estão por todos os lados: patrões das novelas são tirados diretamente do século 19, tratam os empregados a pontapés e desaforos, suportados estoicamente pela classe trabalhadora. De quebra são irremediavelmente canalhas, prontos a enganar a pobre viúva que só herdou o auxílio-funeral do falecido ou passar a perna em um doente terminal. De um lado, a sede de todas as virtudes, de outro o arsenal de todas as malícias.
Afinal, por que estou falando sobre isso? A teledramaturgia contemporânea é isso aí: não existe uma trama preestabelecida, apenas um roteiro geral que vai sendo ajustado diariamente com base em pesquisas de mercado, grupos de foco e ultimamente pelo que transita nas redes sociais. Vilões viram mocinhos e vice-versa em função das reações imediatista dos telespectadores. E o arsenal de artifícios para ajustar a trama não é muito variado: uma gravidez inesperada ou indesejada é rapidamente eliminada com um atropelamento leve, incapaz de matar ou inutilizar. Personagens que caem no desamor do público morrem em desastres automobilísticos, método preferido de eliminação, embora facilmente previsível: se o personagem estiver transitando em uma BMW, uma Mercedes ou um outro carro caro, está livre de riscos; mas se entrar em um Opala, uma Brasília, um Fiat Palio com dez anos de uso, é morte na certa.
Brincadeiras à parte, a emergência da classe C como uma força de consumo é um acontecimento da maior importância e não se pode atribuí-lo isoladamente a esse ou aquele período nem a essa ou aquela política. O motor principal para que isso acontecesse foi e tem sido a enorme expansão do crédito em nosso país e ela se deve, de uma parte, à estabilidade relativa da moeda trazida pelas políticas antiinflacionárias pós-Plano Real do governo tucano; mas foi o governo petista que entendeu o potencial gigantesco da expansão do crédito como promotor do avanço social das camadas mais baixas de renda. Depois de décadas em que o consumo foi contido em nome do controle da inflação, de repente ficou fácil comprar um carro, uma casa, um aparelho de tevê, um computador doméstico. Com a expansão do consumo veio a expansão dos empregos e a melhoria da renda real dos trabalhadores (e vice-versa, pois esse é um processo circular em que o aumento da renda leva à expansão do consumo...). Assim os números relativos às viagens aéreas que hoje superam as rodoviárias, à expansão do mercado de cartões de crédito, aos novos hábitos de consumo adquiridos pelos que estão ingressando no mercado, explodiram.
Infelizmente, Pereirão não tem boas lembranças da escola: seu filho, educado com muito esforço, por enquanto só lhe deu desgostos e humilhações. Essa é uma imagem a ser urgentemente trabalhada pelos noveleiros para que a classe C entenda que as portas reais do paraíso lhe serão abertas pela educação e não pelo merchandising.
Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do doutorado em Administração da PUCPR