| Foto: Divulgação/Secretaria de Administração Penitenciária do Amazonas

Logo no primeiro dia de 2017, o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, abandonou as poucas caraterísticas que ainda tinha de estabelecimento prisional e converteu-se em campo de batalha e palco de execuções violentas. Noticiou-se que a penitenciária estaria sob gestão privada, realizada pela empresa Umanizzare. Essa circunstância provocou uma polarização em torno de um (entre vários outros) tema que não é novo no Brasil: seria a privatização dos presídios uma possível solução para a crise do sistema prisional?

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De um lado, a empresa divulgou seu contrato com o governo, em que não constaria a obrigação de realizar a segurança interna do estabelecimento. Em seu site, esclareceu que foi contratada por licitação para realizar atividades-meio relacionadas a limpeza, alimentação, trabalho e supervisão eletrônica com gravação de imagens. Ao Estado caberia a atividade-fim, que é o comando da unidade, incluído o exclusivo uso da força, disciplina, segurança e vigilância armadas; de outro lado, o presidente da República e o ministro da Justiça afirmaram ser certa a falha e a responsabilidade da empresa pelo ocorrido, pois seria sua a obrigação de garantir a segurança dentro do Compaj e, consequentemente, de impedir a rebelião. Essa colisão de opiniões era de se esperar.

Nenhuma penitenciária é totalmente controlada por empresa particular no Brasil

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A participação privada em presídios brasileiros se iniciou principalmente pela permissão estatal da exploração particular da atividade laboral dos internos, antes mesmo da alteração de 2003 na Lei de Execução Penal (LEP), que permitiu aos “governos federal, estadual e municipal celebrar convênio com a iniciativa privada, para implantação de oficinas de trabalho referentes a setores de apoio dos presídios” (art. 34, § 2.º). Em 2015, incluiu-se o artigo 83-A na LEP, discriminando todas as atividades que poderão ser objeto de execução pelo particular: conservação, limpeza, informática, copeiragem, portaria, recepção, reprografia, telecomunicações, lavanderia e manutenção de prédios, instalações e equipamentos internos e externos. Não há permissão para compartilhamento de atividades estatais diferentes dessas. Além disso, a atuação privada “será realizada sob supervisão e fiscalização do poder público” (§ 1.º). Na realidade, o artigo 83-B da mesma lei esclarece serem “indelegáveis as funções de direção, chefia e coordenação no âmbito do sistema penal, bem como todas as atividades que exijam o exercício do poder de polícia”, inclusive para o “controle de rebeliões” (inciso III).

Consta, nos primeiros dispositivos da Constituição da República, que a segurança de todos é dever do Estado e direito social. Em seu artigo 144, está claro que a segurança pública será exercida pelo poder público, para o que dispõe do monopólio das forças policiais. Não se pode incumbir ao particular essa obrigação, seja via contratação de prestador de serviços, seja via celebração de contrato de concessão com base na lei de parceria público-privada (como a que há em Minas Gerais). Desta forma, ainda que um contrato (ou outro vínculo formal) hipotético entre o Estado e o particular contenha cláusula atribuindo a este a responsabilidade pela disciplina e/ou segurança interna armada do presídio, tal disposição será ilegal. Essa função estatal é indelegável.

Assim as coisas – e como tentativa de se responder à indagação do título –, não haveria, primeiramente (e aparentemente), nexo de causalidade entre o triste desfecho e o contrato firmado entre governo e particular. As atividades da empresa no estabelecimento se iniciaram em junho de 2014 e as mazelas do nosso sistema penitenciário são por todos conhecidas há muitas décadas. Somente a omissão prolongada e o descaso político recalcitrante – sintomas do que o STF já diagnosticou como “estado de coisas inconstitucional” – podem funcionar como causas desse desastre.

O ministro Marco Aurélio, do STF, ao votar, em agosto de 2015, na ADPF 347 – em que se requereram providências judiciais para tratar da situação calamitosa dos presídios nacionais em geral –, já apontava que são “constantes os massacres, homicídios, violências sexuais, decapitação, estripação e esquartejamento”, e a responsabilidade por isso “não pode ser atribuída a um único e exclusivo poder, mas aos três – Legislativo, Executivo e Judiciário –, e não só os da União, como também os dos estados e do Distrito Federal.” Já o ministro Edson Fachin declarou não se tratar “de eficácia normativa da legislação nacional, mas sim de efetividade. É imperativo que se reconheça a ineficiência do Estado em garantir a dignidade dos presos”.

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Em segundo lugar, a palavra “privatização” causa confusão no debate desse assunto. Nenhuma penitenciária é totalmente controlada por empresa particular no Brasil. O que a lei permite é a terceirização de alguns serviços (atividades-meio), como os já citados acima. Se houver problema ou defeito quanto a eles, seu responsável arcará com as consequências. No mais, poderá responder o Estado.

Portanto, não se pode deduzir, ao menos segundo o que foi publicamente divulgado quanto ao ocorrido, responsabilidade da empresa que dividia funções com o Estado. O pavoroso evento foi uma tragédia anunciada e não um “acidente”, assim como não foi acidente a decisão política de imputar à empresa a culpa pelas dezenas de mortos. Mais do que se ocupar em jogar (novamente) o problema para longe de si – como se segurança pública e dignidade humana fossem uma batata quente –, podem os interessados (e especialmente os responsáveis), agora, empenhar-se em não fazer desse fato um marco negativo à iniciativa privada na atividade de gestão de presídios, e sim um momento de valorização dessa alternativa.

Gustavo Scandelari, advogado, é mestre em Direito e professor de Direito Penal.