Nunca sai o mesmo o homem que foi preso. A propósito da discussão sobre o sistema prisional brasileiro após a matança de presidiários por seus rivais em penitenciárias de Amazonas e Roraima, tenho uma história a contar. O ano era, salvo engano, 1997; eu trabalhava como repórter de um jornal de Cachoeiro de Itapemirim.
Antes de contar o primeiro caso, um parênteses: não sei se vocês sabem, mas jornalista do interior escreve sobre tudo, de decisões políticas locais a esgoto entupido e criminalidade, assuntos que muitas vezes coincidem em resultados e odores.
Mas dizia eu que a primeira história aconteceu, salvo engano, em 1997. Fui informado de que a Delegacia da Mulher havia prendido um homem de pouco mais de 50 anos, acusado de estuprar a enteada menor de idade. Se tem um crime imperdoável, para mim, este crime é o estupro. Ponto. Corri para a delegacia.
Autorizado pela delegada, conversei com o suspeito. Homem da roça que vivia com a família num pequeno distrito de Cachoeiro, confessou, algo desconcertado e constrangido, ter tido relações com a menina. Ao ser descoberto, entretanto, comportou-se como um canalha de peça de Nelson Rodrigues: disse que a menina primeiro o provocara e, depois, consentira. Perguntei se ele chegou a pensar que o fato de a menina não ter reagido não significava consentimento, mas medo dele, do padrasto. Ficou em silêncio.
O fato é que o homem foi encarcerado nas instalações da delegacia local da Polícia Civil que, pela quantidade de presos à espera de julgamento, fazia as vezes de presídio com o conhecido circo de horrores, da superlotação a todo tipo de violência física e psicológica.
No ano seguinte, voltei àquela delegacia com o fito de fazer uma reportagem especial sobre o perfil dos homicidas da cidade. Admito, envergonhado, a minha incapacidade de descrever fielmente no espaço desta crônica como era o ambiente onde os presos ficavam. Jamais senti um odor tão acre; jamais estive num ambiente tão repulsivo.
Depois de conversar com os presos comuns, que juravam completa e abissal inocência, fui conduzido pelo policial a uma cela separada onde ficavam os suspeitos de estupro e os travestis. Lá reencontrei o homem acusado de estuprar a enteada. Passado quase um ano, não havia sido julgado nem condenado, embora permanecesse detido.
Cadeia serve para punir o criminoso pelo seu ato e para proteger a sociedade de novas ações
O que depois aprofundou o horror que eu já sentira foi constatar que o lavrador que eu entrevistei havia “morrido” na prisão. O homem suspeito de estuprar a enteada era outro, transformara-se na sepultura de si mesmo. Seus modos, sua fisionomia, seu olhar, sua maneira de falar, tudo havia mudado. Se um ano antes ele confessara a mim a sua infâmia, no segundo encontro negou tudo com uma certeza tão inabalável, livre de qualquer culpa de personagem de Dostoiévski, que cheguei a duvidar da minha memória e, por um momento, da minha sanidade. Só recuperei ambas, memória e sanidade, diante da resposta que ele me deu quando perguntei por que, no ano anterior, ele havia confessado o crime para a delegada e para um jornal da cidade. Ele: “Confessei porque me torturam”. Eu: “como assim? Quem bateu no senhor?” Ele: “O pessoal na delegacia”. Eu: “sério?”. Ele: “sim. E o jornalista também”. Eu: “hã?”. Ele: “o jornalista também me bateu”. Eu: “o que ele fez?” Ele: “Me deu socos e chutes até eu confessar”. Eu: “o senhor tem certeza absoluta disso?”. Ele, imperial: “sim, tenho”. Agradeci pela entrevista e voltei para o jornal.
No caminho, pensei no que a prisão faz com o indivíduo. O lavrador suspeito de um crime abjeto havia incorporado o espírito do criminoso, incluindo a mitomania. Quando fosse solto, seria uma pessoa pior do que era antes. E, se era mesmo culpado pelo estupro da menina, sairia da prisão como um monstro lapidado e pronto para atacar novamente.
Cadeia serve para punir o criminoso pelo seu ato e para proteger a sociedade de novas ações. Se se transforma em local de treinamento vil do que já era degradado, a sociedade sofre duplamente: ao pagar caro para sustentar um presidiário em condições sub-humanas e, depois, ao receber de volta um criminoso ainda mais perigoso do que era. A coisa toda torna-se ainda mais grave se o preso for inocente.
Se é verdade que as discussões sobre alternativas ao atual sistema prisional descambam quase sempre para a vitimização do bandido, também o é o fato incontornável de que a estrutura existente tem de ser modificada urgentemente. E não em benefício dos que cometeram crimes, mas em favor de nós, brasileiros, que somos vítimas dos criminosos e do atual sistema jurídico e prisional.
No fundo, a escolha sempre é entre ser uma sociedade civilizada ou endossar a barbárie.
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