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Carlos Ramalhete

A sabedoria de dona Irena

Dias atrás, tive a alegria de receber uma carta de leitora, enviada por dona Irena, de 90 anos de idade. Ela nasceu num mundo sem antibióticos, sem telefones – que dirá celulares! –, sem computadores. Era já uma mulher adulta quando nossos pracinhas foram à guerra na Itália. Já uma senhora quando o sangue de brasileiros lutando contra brasileiros foi derramado, nas convulsões dos anos 70. E, eu, reverente diante de tanta experiência, alegro-me por ter tido a honra de não só ser lido por ela, mas por ter ela me escrito uma carta. Na carta, ela aponta algumas razões que percebe, com a vantagem de quem viveu num mundo muito diferente, para a violência sem sentido que se expressa nas chacinas de desconhecidos. Aponta-nos como razões a educação sem Deus; a violência extremada apresentada como diversão nos filmes; e a cultura da celebridade, que faz com que o sonho de muitos seja a fama, ou a infâmia.

E, como se podia prever, ela tem razão. São três aspectos, na verdade, da mesma ausência de reconhecimento da ordem no mundo. A cultura atual trata as pessoas como se não houvesse uma natureza humana, como se cada um pudesse e devesse inventar quem é. A escola – sem Deus, como aponta minha leitora – apresenta a história como mera luta por poder terreno. A arte, quando não é propositadamente feia, faz do sangue que jorra e da mentira a tinta com que pinta quadros niilistas. Perdeu-se tanto o senso do humano que as denúncias escritas por Nélson Rodrigues, dez anos mais velho que minha querida leitora, hoje são lidas como celebrações.

Estamos numa sociedade que não percebe e nem quer perceber a necessidade de reconhecer a ordem real, que não é gerada por leis e tropas, mas pelo amor de cada casal e de seus filhos, pelo respeito e reconhecimento da dignidade do próximo. Neste contexto, é de se esperar que não haja diferença entre fama e infâmia; se não há uma cultura, construída ao longo dos séculos e apoiada no reconhecimento de uma origem divina da determinação do certo e do errado, famoso e infame são sinônimos. Uns matam para ficar famosos, como outros se despem pela mesma razão. Qual a diferença, se há quem defenda que matar o filho por nascer é direito da mãe?!

A diferença entre a fama e a infâmia é o quadro de referência moral, demolido pelos meios apontados por dona Irena. Se cada um tem um sistema próprio de valores, na prática não há nem ética nem sociedade: há apenas uma luta por fama e fortuna... ou por infâmia e avareza. Se a moral é subjetiva, não há diferença.

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