Minha intenção com esta série de artigos sobre cultura não foi outra senão mostrar que passamos do estágio de confusão para o de insanidade, algo somente possível quando a indiferença estética se tornou dessenssibilização generalizada aos absurdos mais óbvios. Já não cabe falar na chamada “inversão de valores” – quando se tinha, ao menos, e por exemplo, uma noção de beleza e feiúra. Mesmo quando considerávamos o feio como belo, buscávamos a beleza, ainda que invertida. Essa fase passou, era a da confusão. Agora, não tem mais belo e feio, tanto faz, é tudo questão de gosto pessoal, mais nada – e se o povão gostar, pronto, temos uma “manifestação cultural” que deve ser “preservada”.
Como a indústria do entretenimento já mapeou tudo e mais um pouco de nossos possíveis gostos, dá-lhe a produção em série de mais do mesmo, o que consumimos como devoramos fast food, precisando comer de novo daqui umas três horas, porque pouco alimenta, mas não querendo outra coisa porque, enfim, amamos muito tudo isso. Que nessa selva selvagem surja de vez em quando beleza genuína – e, em função das circunstâncias, redentora –, é o que poderíamos chamar de milagre. Por exemplo, a trilogia cinematográfica “O Senhor dos Anéis”, tão deslumbrante foi que teve até quem lesse os livros depois. Milagre, é claro.
Entretanto, quando interessa, o senso comum, que parecia destruído, volta a ser utilizado por quem o odeia. Já reparou que quando falam em “cultura do estupro” não se está apelando mais à neutralidade da noção antropológica e sociológica, mas ao sentido da palavra cultura contendo valoração intrínseca, pressupondo critério de bem e mal, certo e errado? Pelo relativismo cultural em que vivemos, como repeti várias vezes aqui, não há saída senão aceitar o estupro como se aceita o infanticídio indígena, afinal, se é uma cultura, tem de ser respeitada. Para condenar, como se tem feito no caso do estupro, é preciso devolver a cultura à realidade dos valores. Estupro é mau, logo, se há uma cultura disso, tem de ser “combatida”, não é?
Isso nos dá ocasião para recuperar o sentido de cultura que remete a algo que se cultiva e que, portanto, produz frutos. Quando falamos, por exemplo, de uma cultura de batatas, estamos nos referindo ao processo pelo qual o tubérculo é plantado, cultivado e colhido. Para que a batata cresça e seja saudável há que se cuidar com todo tipo de pragas e intempéries. Por analogia, cultura humana nos remete ao processo de formação do homem e de toda sociedade, de como devemos cuidar, cultivar e “colher” aquilo que de melhor fizemos e nos permite nos tornar melhores. Há, portanto, uma noção de melhor e pior, saudável e doentio, que é inerente à própria realidade do que chamamos de cultura. Por isso, o estupro não poderia ser uma cultura, mas uma praga que atrapalha, se é que não lhe impede.
Mas, quando seguimos nessa linha de raciocínio e apontamos o óbvio, qual seja e por exemplo, que o funk atual, como manifestação popular, alimenta a praga do estupro, aí não!, aí não dá para aceitar!, é preciso respeitar e proteger o funk porque “pela noção atual dos estudos culturais, da antropologia e sociologia” e bibibi e bobobó. É esquizofrênico, mas já não causa espanto, infelizmente. De tanto proteger as pragas, matar plantações e envenenar o solo, o que temos, no fim das contas, é a cultura do estupro mesmo, a cultura do estupro da cultura. Que colhemos com isso? Ao vencedor, nem as batatas!
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