Eis um livro indispensável: A Beleza Salvará o Mundo, de Gregory Wolfe. Especialmente para os conservadores, porque, como diz o autor: “a maioria dos conservadores pensa na cultura como um museu, e não como uma continuidade orgânica. Eles são todos a favor da promoção dos clássicos, mas quando se trata de cultura contemporânea, simplesmente se eximem”.
Pior, quando não se eximem, é só para demonstrar desprezo. Desprezo do pior tipo, aquele do “não vi, não li, não ouvi e não gostei”. O Prêmio Nobel de Literatura dado a Bob Dylan lhes foi irresistível. Saíram todos do Condado do Conselheiro Acácio, onde muitos vivem e se reproduzem, para ir à feira da zoeira oferecer o que parece óbvio: músico não é escritor.
Por que a leitura de letras de música não poderia ser literatura também?
Deduzo que nas suas histórias da literatura o trovadorismo, por exemplo, tenha sido expurgado e, com ele, todo o processo pelo qual, aos poucos, letra e música foram se dissociando, passando o poema dos trovadores a não ser mais acompanhado por instrumentos musicais, mas apenas pela voz, seja sendo declamado ou apenas lido.
Que há alguns séculos a literatura tem se entendido apenas por textos escritos, seja em prosa ou verso, é um fato. Por isso, talvez, os “velhinhos do Nobel” devessem mesmo ter escolhido um escritor “típico” do nosso tempo, pois essa decisão só poderia causar estranheza e confusão, como causou. Mas concordo com o escritor Miguel Esteves Cardoso: é uma boa confusão. Desde que os entendidos no assunto viessem para resolver a confusão, não praticar a arte do esnobismo. Infelizmente, como bem apontou Martim Vasques da Cunha, em artigo publicado nesta Gazeta, a grande maioria apenas criticou aquilo que jamais quis conhecer e entender.
O que é a literatura, no fim das contas? Se é somente texto escrito, as peças teatrais de Shakespeare só são literatura quando lidas? Se forem encenadas, deixam de ser? Nessa linha de raciocínio, por que a leitura de letras de música não poderia ser literatura também? Não pretendo resolver esse problema da equivocidade do termo “literatura”, apenas ressaltar a leviandade de muitos críticos que, aliás, costumam ser os mesmos a confundir a qualidade da literatura com sua substância.
Ou seja, para eles, má literatura não seria literatura de modo algum. Boa parte da crítica à arte contemporânea em geral é inútil porque parte dessa premissa equivocada. Por exemplo, Paulo Coelho pode fazer péssima literatura – e faz mesmo –, mas é literatura. Se o crítico se exime de ler e avaliar porque crê não ser literatura, é ele quem deixa de ser crítico. Não é preciso dizer que isso transforma a literatura num fetiche, com consequências espirituais desastrosas para o crítico e o público leitor. Não há mais a chamada arte da “grande conversação” entre as gerações, os clássicos vão se tornando distantes e incompreensíveis, a alta cultura passa a ser instrumento de desprezo de tudo que está abaixo dela e a confusão se instala. Todos perdem.
Se, conforme diz Gregory Wolfe, no livro citado, o artista deve “dramatizar os conflitos de seu tempo e incorporar significado em suas obras de maneira profunda”, Bob Dylan é dos maiores artistas do “nosso tempo”. Poucos conseguiram retratar a desorientação do homem pós-1960 como ele. How does it feel? How does it feel? To be without a home? Like a complete unknown? Like a rolling stone? Não contenha o pezinho, meu caro crítico, diga como você se sente. Ah, Dylan recusou o prêmio? Tudo bem, querido crítico, entendo. Pode voltar a ignorá-lo.