A rejeição, pelo Tribunal de Contas da União, das contas do governo federal atinentes a 2014 me trouxe a lembrança de eventos marcantes em anos de final 4 que revelam como digladiam o Brasil patrimonialista e o Brasil institucionalista.
Antes que o leitor me imagine como aficionado por numerologia e quejandos, devo dizer que há muito optei por racionalidade científica, conhecida como agnose, que me faz não acreditar em bruxas.
Em 1954 Getúlio Vargas se retirou da vida e da história, como se pode sentir 60 anos depois. De qualquer modo, o suicídio foi causa de turbulência política que chocou o ovo de jacaré que eclodiu em 64. Esse monstro político era bicéfalo e sua cabeça racional deu azo às eleições legislativas de 74, vencidas de fio a pavio pela oposição. Ali, naquele momento, a luta armada e a repressão foram deslegitimadas e a via política se pavimentou para que o bicho não se transformasse em dragão voraz como ocorreu com os vizinhos hispanófonos.
Na praça Osório, Curitiba, janeiro de 84, o caminho político passou a ser trilhado pelas multidões que apoiavam a ideia da eleição direta para presidente. Em si a tese é fraca, até porque o parlamentarismo é o desenho institucional que nos levará a patamar civilizatório superior, porém servia como catalisadora do desejo de que o país se tornasse normal, com face semelhante às democracias europeias e não das cômicas republiquetas latino-americanas que fazem revolução até faltar papel higiênico. A vitória de Tancredo no Colégio Eleitoral e a Assembleia Constituinte foram a continuidade da caminhada.
O ano de 2014 parecia ser o da vitória do Brasil atrasado
Todavia, a economia seguia trôpega, como empresa familiar mal gerida e sempre à beira da bancarrota. Em 94 o Plano Real trouxe para o campo econômico a mesma racionalidade que se desenhava para o político. Parafraseando Marcelo Nova, eu vi futuro melhor no painel do meu Opala Chambord.
A cabeça retrógrada do monstro patrimonialista ficou submersa por algum tempo, mas voltou à tona em 2004, quando o mensalão começou a se tornar de conhecimento público. O Brasil feudal, cujos políticos agem como se a investidura em cargo de poder fosse atribuição de título de propriedade sobre os bens do povo, voltou com toda a energia.
Mudando os atores, a liça entre a modernidade republicana e a patrimonialidade feudal permeia essas seis décadas que percorro nesta análise. O ano de 2014 parecia ser o da vitória do Brasil atrasado, da mesma estirpe das caricaturas da pobreza política e econômica que paralisa a América Latina, tamanho o cinismo da “contabilidade criativa” que agrediu o direito fundamental de cada cidadão a ter a sua parte nos bens públicos tratada com respeito. A honestidade na contabilidade pública não é coisa de direita ou das elites. É parte do direito humano a se associar e constituir coletividades políticas que sirvam ao indivíduo e não façam dele um bobo a ser lesado.
Contudo, para a felicidade geral da nação, 14 foi o ano de as leis que protegem a alma da República se materializarem em processos penais – pautados pelo Estado de Direito – que acuaram os arautos do feudalismo. A decisão do Tribunal de Contas de União se soma a essas expressões da higidez das instituições de matiz republicano.
Talvez 68 tenha terminado em 14.