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Friedmann Wendpap

Crime e castigo

 | Gilberto Yamamoto/Gazeta do Povo
(Foto: Gilberto Yamamoto/Gazeta do Povo)

Imagens de Kadafi ferido, pedindo aos captores que não o matem; em seguida aparece morto. Cenas icônicas se sucedem: dezenas de celulares fotografam o cadáver, pessoas felizes em torno do defunto, curiosos transitando pela câmara frigorífica para ver os despojos. De semideus a pútreo exposto aos olhares vingativos de quem antes obedecia e agora se sente liberto. Trajetória de quase todos os tiranos que deambularam pela história, indo do amor ao ódio. Ao poder absoluto, a desgraça absoluta. Estátuas derribadas, fotos pisoteadas, mansões devassadas. A frequência desses acontecimentos não evita que outros tiranos surjam no cenário.

A face desfigurada de Kadafi não sai da mente. Crime, não castigo. As declarações de políticos importantes como Sarkozy, Obama, saudando a barbárie são primitivas como a de qualquer tiranete terceiromundista. Chávez lamentou a morte não pelo fato em si, mas por temer destino similar. Ao começar novo governo sobre a carne lacerada de Kadafi, condenado sem julgamento, se manteve a violência como ferramenta política. Seis por meia dúzia para os líbios. Continuará a escravidão, mudando a imagem nos painéis, estátuas.

O Estado existe para promover o castigo, não praticar crime. Indivíduos agem de modo passional, raivoso, violento. Qual o sentido de constituir ente coletivo para a prática de condutas iguais às individuais? O Estado justifica a sua existência quando mitiga, não quando maximiza a besta que habita o homem. Antes a violência por iniciativa privada à de iniciativa pública, apta a produzir danos em escala planetária. O aparato público deve assegurar que todos, independentemente do mal que geraram, sejam submetidos a julgamento que observe garantias. Certamente Kadafi seria condenado, mas júri imparcial atribuiria pena na medida dos crimes, fazendo justiça ao invés de vingança.

Restam poucos tiranos à Kadafi; violentos e paternais ao mesmo tempo, mercuriais como reis da antiguidade que têm o povo por objeto a ser usado e abusado. As pessoas servindo de meio para a satisfação da gana mórbida pelo poder. O mundo ficará mais desagradável se forem vítimas da mesma truculência. É relevante reclamar postura civilizada dos governos do ocidente.

Contudo, neodéspotas se apresentam: ao estilo Putin-Chávez, chegam como quem chega do nada e se instalam feito posseiros no centro de decisão. Menos caricatos que Kadafi, governam com pele de democracia e músculos de autocracia. São a fina flor do cesarismo, atribuindo-se heroísmo, saúde sobrehumana, guias para futuro grandioso, superior ao dos demais povos. Operam emulando tensões políticas internas e externas. Testosterônicos, estão sempre a um passo da briga. Danosos à democracia, eram levados ao ostracismo na Atenas clássica. Hoje, invadem as casas pelas telas de televisão.

O cientista político Michael Bernhard da Universidade da Flórida denomina essa variedade de autoritarismo competitivo e vê a possibilidade de degeneração em ditaduras violentas produtoras de novas cenas tristes ou, caso se abram a resultados eleitorais lídimos, podem se tornar estação no caminho da democracia. Seguimos a segunda trilha e devemos sempre nos lembrar disso.

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