Há duas semanas fiz alusão, no fim de um texto sobre a felicidade, ao samba Dezesseis Toneladas, cantado por Noriel Vilela. Muitos leitores ficaram intrigados com a expressão "o sofisticado balanço do famoso dezesseis toneladas" e me disseram que não haviam decifrado a mensagem. Essa dificuldade me trouxe à memória uma música do Arrigo Barnabé na qual ele recita Nietzsche falando sobre o prazer dos enigmas da arte e que a relação entre o artista e o apreciador da obra é repleta de códigos e a decodificação é momento de encanto, até porque o ato interpretativo também é arte. Afinal, se tem a arte para não morrer de tanta verdade.
A tecnologia facilitou o acesso à arte. Quando me lembrei do pequeno fragmento do samba do Vilela, a internet fez o resto e trouxe a música inteira. No passado, seria necessário ligar para as rádios até encontrar alguém que identificasse qual era a música e a tivesse em arquivo nas bolachas de vinil. A chance de apreciá-la novamente, quase zero. A presença instantânea das obras de arte para deleite dos sentidos pode macular direitos dos artistas. É problema mal resolvido. Creio, a solução virá com mais acesso, com o incremento do número de pessoas que suavizam a vida fruindo os signos enigmáticos das artes e se entregando à diversão da decifração.
Mudando da arte para o esporte, outro motivo para não morrer de tanta verdade, o frêmito que se vê nas ruas com a aproximação da Copa não tem visgo. Saí às ruas para comemorar a conquista do tricampeonato que acompanhei pelo rádio. Naquele momento houve forte emoção com a taça Jules Rimet que estava em disputa desde o início do campeonato mundial de futebol nos anos 30. Hoje somos nação adulta, os estrangeiros já sabem que Buenos Aires não é nossa capital, embora ainda acreditem que é o Rio de Janeiro. Vencer nos esportes não tem o significado de mostrar que existimos; muita gente vai voar em aviões fabricados no Brasil durante a viagem à África do Sul. A nossa existência é fato econômico e político na mente de toda a humanidade. Além disso, foram tantas as vitórias que os prefixos greco-latinos para a contagem se tornarão incomuns; pensem nos locutores gritando hendeca campeão quando vencermos pela décima primeira vez. Um tédio. À medida que crescemos, esses belos eventos se tornam menores e não justificam parar o país para contorcer as vísceras de tanta angústia diante das dificuldades de uma partida.
De certa forma, o grande prazer será ver futebol arte e não algo profissional, burocrático, ainda que eficiente. Jogar bonito é preciso, vencer não é preciso.
A Copa da África do Sul tem a marca das cornetas chamadas de vuvuzelas. Fazem barulho atordoante. Os repórteres dizem, com sorriso amarelo, que as tais fazem parte da cultura local. Não é verdade. Aquilo é modismo emulado pela indústria chinesa. Olhando mais devagar, são expressão de muito egoísmo; uma única vuvuzela se faz ouvir ao longe e quando todos as utilizam, reina a cacofonia. Só com a garganta as pessoas precisam cooperar para somar as vozes e o efeito é lindo. É verdade que às vezes as coisas ditas pela multidão nos estádios fazem corar até gente acostumada com linguagem chula. A corneta é o supra-sumo da competição, cada um tentando ser mais barulhento que o outro; o resultado é feio, desagradável.
Quiçá a rica musicalidade dos doze idiomas sul-africanos supere o vagido das vuvuzelas e legue para a história algo como a ola dos mexicanos.
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