A paisagem fica especialmente bela com a névoa fria da aurora enroscada nos capões de pinheiros. Vacas se espremem para chegar ao cocho, papagaios voam em sentido oposto à trajetória do carro. Dia ótimo para visitar a memória da imigração ucraniana em Prudentópolis. A cidade pequena parece ainda mais calma no início da manhã de um dia ensolarado. A Igreja Ortodoxa Ucraniana é linda; as portas laterais abertas convidam a entrar. O interior é deslumbrante. Pinturas, ornamentos, madeira entalhada, imagens formam conjunto que induz à reflexão sobre comunhão em torno da fé. Absorto, não percebo o tempo e, súbito, pessoas começam a chegar para uma cerimônia de casamento. Observo a alegria das famílias de aparência rurícola e, ao sair, deparo com carros enfeitados com fitinhas de cores vivas, eslavas, para alegrar o cortejo matrimonial.
Perto da Igreja, a estátua de Tarás Schevtchenko imortalizado no centro da praça que fica sobre o Museu do Milênio. Camões da Ucrânia, Tarás fixou o idioma na poesia, literatura e deu importante contribuição para o desenho e pintura. Servo de um aristocrata russo, como muitos da sua nação, libertou-se pela arte e por ela foi condenado ao exílio quando da sua letra saltou opinião política contrária ao despotismo da realeza russa. Camões, no catre da morte, soube que Portugal se incorporaria à Espanha e bradou: "Morro com a pátria"; Tarás, morreu antes da pátria com a qual sonhava. Leio poemas e não me encanto. Talvez a tradução para o português iniba a cadência melódica ou meu distanciamento cultural não permita sentir as emoções que ele desejou transmitir. Sigo examinando as peças do museu e ouço velhinhas conversando em ucraniano; será que os jovens são versados no idioma dos velhos ou, como eu, tornaram-se monoglotas?
Imerso em Bíblias escritas em cirílico, utensílios domésticos e de lavoura, roupas típicas, começo a pensar na história mais recente da Ucrânia e lembro-me da palavra holodomor. A guia, idosa, lacrimeja quando pergunto o significado: "matar por fome" diz ela e começa a discorrer sobre a Ucrânia no começo dos ano 30, quando milhões de famélicos morreram em meio a campos verdejantes de trigo, aveia, milho. Sob o jugo de Stalin, ucranianos produziam alimentos que eram coletados a título de contribuição para a revolução. Pessoas morriam nas ruas; sentavam-se e apagavam. Não se sabe quantos morreram: cinco, dez milhões. É certo, diz a guia, as mortes foram resultado da decisão de Moscou de punir os ucranianos pela resistência à coletivização dos campos. Não foi a chuva, o frio, a natureza; as pessoas morreram porque Stalin decidiu que deveriam morrer. Ela se cala, dando a impressão de que o assunto é muito dolorido. A minha curiosidade sobre esse genocídio pouco conhecido fica aguçada, mas por respeito à tristeza alheia, silencio.
Enquanto perco o fôlego diante da beleza do Salto de São Francisco, fico pensando nos genocídios que marcam a memória com dores antigas. Esquecê-las, cria condições para que o mal ressurja. Não esquecer, é viver todos os dias como se fossem ontem.
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