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Em 1938 Carmem Mi­­­randa cantava o delicioso samba de Assis Valente ironizando as confusões ocorridas na véspera do fim do mundo; a protagonista da história acreditou na conversa mole e, pensando que o mundo ia se acabar, tratou de aproveitar, beijando na boca de quem não devia, perdoando ingratidão, gastando mais de quinhentão para comemorar o fim da inimizade. Porém o mundo não se acabou e as estripulias renderam muito constrangimento.

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Sessenta anos passados desse fino deboche, a aproximação do ano 2000 fez muita gente tremer com medo do apocalipse. Falou-se demasiada bobagem sobre o bug do milênio, a chegada da besta, abertura dos portões estelares, membros de seitas cometeram suicídio coletivo e o tal do mundo não se acabou. Do festival de breguices restam livros sobre os mais diversos assuntos arrematados com "no Terceiro Milênio"; da filosofia à ginástica sobre bola inflável, tudo vinha com o indicativo de que inauguravam conhecimento imprescindível para viver tempos modernos, diferentes. Pessoas se tornariam melhores, quase angelicais, quando olhassem o calendário e sentissem os eflúvios da chegada dos novos tempos; os nascidos no Terceiro Milênio teriam alma azul e nós, os velhos do milênio passado, quedaríamos embasbacados diante de tanta grandeza moral e espiritual dessa geração.

O tempo não sabe que se registra o tempo. O tempo não passa; passamos por ele. Ainda que não se fizesse a contagem dos passos, se passaria. O tempo é o mais igualitário dos recursos: uma hora é igual para cultos e ignorantes, incréus e crentes. O tempo é natural; contá-lo, não. Assim, cada cultura conta o tempo a sua maneira e, principalmente, adotando algum evento para início das anotações. Pontos de partida distintos, mas parece que todos pensam no fim dos tempos; ninguém se conforma com algo sem fim. Amanhã ou mais um pouquinho adiante, haverá a derrocada. A finitude é humana; o tempo, não. Ten­­­tamos moldar o tempo à nossa imagem e semelhança, com começo, meio e fim. A antropomorfização do tempo na imagem mitológica de Cronos é pura incapacidade de compreender a eternidade, tempo absolutamente imóvel.

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Primo vivere, dopo filosofare. Para simplesmente viver, é preciso imergir na cultura e se entregar ao tempo contado, regulado, marcado; entrega àquilo que se está adaptado para vida de pouca interrogações, muitas exclamações e um ponto final. Nessa perspectiva, é o tempo que passa por nós. E como passou! Ao escrever cheques e outros documentos com a data de 2000 a novidade era grande, quase efusiva. Depois veio o hábito e mal e mal há lembrança das décadas começadas por mil e novecentos. Meras referências numéricas ao que já foi vivido e ao que se imagina, será vivido. O passado e o futuro são irrelevantes para o viver: a vida é sempre no presente.

2011 chegou: a geração azul fará onze anos e breve os hormônios lerão a partitura da natureza, trazendo as desafinações agressivas típicas de adolescência em qualquer milênio; não houve a pane geral nos computadores, não se descobriu a pedra filosofal da energia, as pessoas continuam lendo horóscopo; quiromantes, cartomantes, videntes fazem propaganda nos semáforos. A vida segue sempre no presente.

Pensar muito nessa época do ano faz mal. Melhor é curtir a alegria da sensação de abertura de novo ciclo, nutrindo a esperança de cumprir as promessas sobre os cuidados com a saúde, os estudos, o prazer da convivência, até a contabilidade que antecederá o réveillon de 2012. O mundo não se acaba, mas o nosso tempo, sim. Então, para que não se perca o tempo, amar as pessoas como se não houvesse amanhã e viver a eternidade, hoje.