A barba de Julian Assange esbranquiçou nesses anos em que ele se refugiou na embaixada do Equador em Londres, fugindo de imputação de estupro assacada pelo Ministério Público da Suécia. Assange negou o fato e disse ser vítima de perseguição porque havia desvelado milhares de documentos politicamente sensíveis do governo norte-americano. Recentemente noticiou-se a prescrição da acusação e, espera-se, em breve ele possa transitar livremente.
Trazer o Wikileaks à memória se destina a desenvolver argumentação sobre o retorno à vida tribal no que toca à fofoca. Por milênios vivemos sem privacidade. Na aldeia, vila, comuna, todos sabiam tudo de todos. Alguns se especializaram em saber e irradiar as condutas e acontecimentos da vida dos outros. Curiosamente, o substantivo é feminino: fofoqueira. Talvez politicamente correto seria o neologismo fofoqueire, dada a carga pejorativa sobre a composição cromossômica XX. Arre, essa baboseira de palavras neutras lembra a novilíngua de Orwell. O mal não está na palavra, está no coração.
A cidade moderna criou as condições para assegurar a subsistência sem exigir em troca a onisciência sobre a pessoa
Antanho, a pervasiva opinião alheia perscrutava até a alcova, funcionando como mecanismo de controle social extremamente eficaz. A boa reputação era o maior patrimônio no microcosmo da existência. Adjetivos pespegados pelos mexeriqueiros grudavam no alvo: honesto, caloteiro, corno, mulherengo, voluptuosa, frígida. Rótulos que chegaram a se transformar em nomes de família.
O agigantamento das cidades nos dois últimos séculos produziu anonimato que a humanidade nunca havia experimentado. Milhões se acotovelando nos coletivos, nas praças. Corpos próximos, mentes distantes. Quem é, o que pensa, quem é tua mãe, teu pai, quem são teus filhos, avós, tios, primos? Nada, nenhuma palavra nos ônibus lotados. Quando muito, reclamações sobre o trânsito, excesso de passageiros, calor, frio, preço da passagem. Ali, no anonimato, a pessoa é ela, apenas ela, sem a trama parental/social na qual se alberga emocionalmente.
Adultérios, bastardias, prazeres sexuais heterodoxos. A intimidade guardada nos apartamentos do prédio em que os moradores não se veem, não se conhecem, não se visitam. Os grilhões da fofoca se romperam e o anonimato gerou benefícios e angústias individuais. Solidão na multidão e a explosão do id para a luz, sem a vergonha das reprovações comunitárias.
O círculo de convivência tribal era imutável. A pessoa, por mais que se sentisse oprimida, não tinha alternativa viável. Renegados, banidos, órfãos sem parentes tinham o crime ou o prostíbulo como via para a sobrevivência.
As metrópoles ampliaram geometricamente as oportunidades para os indivíduos. Despiciendo ser legião, basta ser um para encontrar o amparo mínimo à vida fisiológica. A cidade moderna criou as condições para assegurar a subsistência sem exigir em troca a onisciência sobre a pessoa.
Era assim até a internet, as redes sociais, as de encontros amorosos e afins. Os 37 milhões de usuários do Ashley Madison, página de affaire extraconjugal, expostos ao mundo sentiram o planeta encolher até a dimensão de uma vila. Para eles, o globo é aldeia.
Já contou para alguém que viu o nome da vizinha na lista?