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Do rádio no carro, num comentário sobre mercado de trabalho, salta a expressão work at home para designar o trabalho assalariado em casa. A analista falava do tema como algo novo que modificará a vida. Confesso, fiquei irritado com tantas palavras em inglês, mas o tema que pretendo versar passa ao largo desse uso deselegante do idioma instrumental, tão lindo quanto uma chave-inglesa. Na verdade, nos acostumamos com as condições do momento da nossa existência, a ponto de as tomarmos como fato natural. Somos nós e nossas circunstâncias, diria Or­­tega y Gasset. Por força dessa es­­trutura pronta à qual somos agre­­gados, estão pré-definidos os horários para acordar, ir à rua ao mesmo tempo, fazer a refeição do meio-dia, para encerrar a jornada laboral, para obter alguma distração em casa, para dormir e no dia seguinte, sacudido às seis da manhã com um sorriso pontual, repetir todo o enredo.

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Na fila do ônibus, dos carros, no desespero para sair meia hora mais cedo para escapar do congestionamento, na fila do restaurante para o Dia dos Namorados, se faz o que se deve fazer dentro da moldura posta pelo modelo que retirou a produção de dentro do lar. A atividade doméstica deixou de ter qualquer conotação econômica e passou a denotar fardo relacionado à higienização da casa e provimento de alimentação. O trabalho fora da casa consome a maior parte da vida quando somados o tempo de deslocamento e a permanência. As em­­pre­­sas chegam a falar em "família" para motivar os trabalhadores que convivem mais com os colegas do que com os parentes. O detalhe é que a família, nas crises, não demite ninguém porque a lógica de funcionamento é cooperativa e a em­­presa, competitiva.

A produção agrícola exige que a moradia e a área de trabalho sejam a mesma coisa; a me­­canização da agricultura pouco modificou esse quadro. A indústria sem máquinas era realizada por organizações em rede, cujos nós eram as casas dos operários. A logística consistia em prover de insumos e recolher os produtos manufaturados de cada ponto da rede. A família era a unidade produtiva. As grandes máquinas da Revolução Industrial exigiam espaço para funcionar e elas se tornaram o polo de atração dos trabalhadores. Daí o barracão, o horário, a sirene, os deslocamentos massivos em direção a poucos pontos de produção. As metrópoles são efeito colateral dos barracões industriais. Tra­balhar longe de casa, com centenas de pessoas sem vínculo afetivo, é situação recente.

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Na urbe, onde as pessoas vi­­vem espremidas como pinhões numa pinha, os serviços encontram campo para desenvolvimento e absorvem mais trabalho que a extração, a lavoura e a industriação porque as máquinas ainda não estão aptas a prestá-los. Contudo, a lógica do barracão impera também na atividade econômica que não utiliza máquinas. O Direito do Trabalho consagra essa práxis e abomina o labor in domus, talvez porque ele tenha algo de indômito e o Esta­­do, que controla o patrão controlador, perderia poder com o esvaziamento da ascendência patronal sobre o tempo do trabalhador.

Os serviços dependem mais de comunicação do que de má­­quinas operativas. As redes computacionais criaram a infraestrutura para que a produção imaterial possa ocorrer difusamente, liberando as cidades das manadas que rumam para os pontos de concentração para prestar serviços. Os prefeitos lutam para mitigar os problemas de trânsito, os presidentes incentivam a produção de mais automóveis particulares; os citadinos se enervam como gado confinado. O problema de fundo não é viário ou de crescimento da produção industrial, é de modus vivendi. A casa, dormitório da família que vive fora dela, pode ser o centro de convivência e sobrevivência.

O raciocínio singelo imagina que uma mão invisível toca na infraestrutura e a essa ação ocorre, mecanicamente, reação na superestrutura. A interpretação marxista é simplória porque elide o poder político que conservou, em compota jurídica, a organização social decorrente da Re­­volução Industrial e impede que novos arranjos ocorram. Talvez seja hora do passado passar.

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