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Estávamos distraídos nu­­ma modorra profunda de colônia de um império decadente que imitava as modas e modos da corte francesa e devia a bancos ingleses. A vida bruta, breve e medíocre da metrópole lusitana teve sua futilidade rompida pelo chão que tremeu e o mar que avançou na manhã de todos os santos em 1755. Ensimesmados, lusos gastaram o século lambendo as feridas que a terra abriu do Algarve ao Estoril. O que já era um viver com as memórias centenárias dos feitos quase milagrosos que venceram o oceano tenebroso e puseram o mundo na mão da Europa, tornou-se um fado mais doído como se o destino houvesse esquecido quanto do mar salgado são lágrimas de Portugal. Magoados pela natureza e incapazes de qualquer grandeza que igualasse as lendárias d’outrora, metropolitanos e colonos mal viram que a história passava por suas janelas e logo ali, nas terras que Júlio César havia romanizado, explodia como revolução, vertendo lava que soterrava o passado e moldava o futuro.

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As ideias, motor e combustível da ação, circularam na parte desenvolvida da Europa à época (norte da Itália até o sul da Es­có­­cia, similarmente à situação atual). O arejamento intelectual fo­­mentou a revolução industrial na ilha pragmática e iluminou as mentes que se indignavam com a monarquia absoluta na França. Em Portugal e na colônia brasileira as ideias pouco transitaram: a decisão política de fechamento das fronteiras intelec­tuais limitou o horizonte à Bíblia e outras obras admitidas pelo Va­­ticano. A pena do Marquês de Pom­­­­bal foi a única que assinalou alguma sintonia com o tempo da Europa iluminista, mas para o vasto império luso, não permitiu mais do que uma candeia. Se antes era a escuridão, com ele, a obscuridade da caverna onde a cultura e a economia viam apenas a própria sombra, com as luzes do passado a suas costas.

O Iluminismo, que Kant qualificou como a maioridade hu­­mana, foi a mais intensa concentração temporal de pensamento livre refletindo sobre política e sociedade já havida na história; um pouco antes, Donatello, Ra­­fael, Michelangelo, Leonardo da Vinci, haviam tirado a Europa da menoridade artística. Hobbes, Rousseau, Beccaria, tornaram a ci­­vilização ocidental capaz de compreender seus atos e, portanto, responsável pelas consequências. No Iluminismo ocorreu o fenômeno da exponenciação, isto é, milênios de cultura ocidental forneceram as teses e antíteses para poderosas sínteses que, por sua vez, foram prontamente devolvidas à condição de tese e o processo dialético se acelerou, produzindo mais conhecimento científico do que todos os estudos pretéritos.

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Quando as portas da Bastilha ruíram diante da multidão enfurecida em 14 de julho de 1789, ini­­ciou-se um período sanguíneo na França e, depois, ainda co­­mo parte do ideário de expansão ideológica da Revolução, a violência se estendeu pela Eu­­ro­­pa até a derrota de Napoleão. No ceticismo lampedusiano tudo deve mudar para que tudo fique como está; a Revolução mudou tudo, até o modo de medir, pe­­sar, falar, nominar o decurso do tempo; pouco depois o passado estava de volta. Tudo mudou e quase tudo voltou ao que era. Os meses denominados de pluvioso e ventoso voltaram a ser janeiro, fevereiro e março; porém, a desigualdade entre as pessoas, antes uma situação social que retratava as diferenças naturais, passou a ser rejeitada como aberração selvagem e deu ensejo, entre outros acontecimentos, à luta contra a servidão.

Ao escrever livremente sobre aqueles eventos fortes, expressando opinião sem medo de re­­taliação física, econômica, religiosa ou política, devo dar crédito às pessoas que pensaram no valor da liberdade e àquelas que foram as ruas afirmar, contra as baionetas, que a liberdade de mo­­vimentos e idéias é o piso, o início, da condição humana. O sangue, as dores e rancores já se foram; ficou o substrato ideológico que propiciou a formação da república e da democracia. Assim, a data serve para evocar o valor das ideias e homenagear as pessoas que viveram intensamente por elas.