Quando morre um jornal, morre com ele uma parte de nós. Morre a pequena alegria de encontrar a edição de hoje a nos esperar na porta de casa, feito alguém que chegou cedo e humildemente nos deixou dormir mais um pouco. Morre a conversa com os vizinhos no elevador, morre o comentário do porteiro sobre a manchete de domingo, morre a indignação do taxista, morre a surpresa na página 4 e o riso na charge. Se prestarmos atenção, veremos que o nosso coração passou a bater menos uma vez por minuto. Naquele pequeno e quase imperceptível intervalo entre a sístole e a diástole, morreu um jornal.
Quando morre um jornal, morre a nossa certeza de que dia é hoje. Morre o nosso companheiro do café da manhã, do intervalo de almoço, do criado-mudo antes de dormir. Morre o horário de cinema, morre o horóscopo, morre a tirinha nonsense, morre a lista do que abre e fecha no feriado. Morrem a previsão do tempo e o próprio tempo. Ninguém sabe se amanhã choverá.
Quando morre um jornal, morre um tanto da verdade, um tanto da beleza, outro tanto da justiça. Mas não morre o fio que as unifica
Quando morre um jornal, morrem as histórias desconhecidas, os sacrifícios silenciosos, as intuições milagrosas que o tornaram possível. Não é à toa que tantos dizem: “Fazer jornal é um milagre diário”.
Morrem os dedos um pouco sujos de tinta e a notícia lida mesmo quando a edição de ontem foi esquecida por alguém sobre um banco de praça. Morre o horário preciso do eclipse, morre a agenda de eventos, morrem os cachorrinhos vira-latas que não serão mais adotados.
Quando morre um jornal, morre um pouco da cidade. Morrem províncias inteiras do passado, do presente e do futuro – e também alguns condados na eternidade, onde essas divisões geográficas do tempo não existem. Quando morre um jornal, morre em nós um pouco do amor, um pouco do ódio, um pouco da esperança. Morre um tanto da verdade, um tanto da beleza, outro tanto da justiça. Mas não morre o fio que as unifica.
Jornais morrem de maneira incruenta e quase discreta. Como se houvesse um mágico, desses de festinha de criança, a nos dizer com um sorriso melancólico: “Estava aqui... Não está mais!” Um mágico triste por um motivo que não sabemos. Com a cartola e a casaca puídas. Um mágico que se apresentou em tantas festinhas que as crianças que o viram pela primeira vez hoje são avós.
Dá vontade de pedir a ele: “O senhor pode trazer um jornal de volta?” Ao que ele responderá, com a voz suave: “Meu filho, essa mágica é difícil demais pra mim...”
E quando o mágico estiver indo embora, levando no bolso o seu humilde cachê, perceberemos que leva também alguns doces da festa, cedidos a ele por compaixão dos pais da criança. E os doces estarão embrulhados em papel de jornal.
Quando morre um jornal, morre uma ilusão que fazia a nossa vida melhor.
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