Na última sexta-feira, neste mesmo espaço, mostramos como o voto do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, para quem o aborto realizado no primeiro trimestre de gestação não deveria ser crime independentemente dos seus motivos, foi completamente equivocado do ponto de vista jurídico-processual ao extrapolar o escopo do julgamento no qual foi proferido e violar todo o ordenamento jurídico nacional. Mas restam os demais erros do ministro, infelizmente endossados pelos colegas Rosa Weber e Edson Fachin, que consistem em argumentos de ordem ética referentes ao ato do aborto.
O voto de Barroso afirma que a criminalização do aborto “viola diversos direitos fundamentais da mulher”, citando, em primeiro lugar, o da autonomia, que teria como aspecto central “o poder de controlar o próprio corpo e de tomar as decisões a ele relacionadas”. Ora, que a mulher tem o direito de controlar o próprio corpo não há dúvida. Mas, aqui, é preciso lembrar o óbvio – que, apesar de evidente, tem de ser repetido todas as vezes em que se está diante do já surrado slogan “meu corpo, minhas regras”: o embrião, ou feto, não é parte do corpo da mulher, e sim um outro ser humano, um novo indivíduo, com DNA diferente daquele de sua mãe.
O fato de ser dependente não retira nenhuma dignidade do ser humano – ao contrário, deveria ser um reforço à sua proteção
E o único momento definidor do surgimento da vida humana é o do encontro dos gametas. Este é um dado científico; não se trata de uma “escolha religiosa ou filosófica de cada um a respeito da vida”, como quer fazer parecer Barroso. É na concepção que se processa a transformação ontológica; nenhum outro momento do desenvolvimento embrionário ou fetal opera a mudança do “não humano” para “humano” – nem mesmo a mudança do primeiro para o segundo trimestre de gestação, esse “momento mágico” no qual, para Barroso, a autonomia da mulher deve cessar, mostrando o quão incoerente é esse argumento.
E, sendo o embrião ou feto vida humana, seu direito à vida sobrepõe-se à autonomia da mulher, aos “direitos sexuais e reprodutivos” também citados por Barroso, e independe do fato de “depender integralmente do corpo da mãe” – essa “dependência integral”, aliás, se observa mesmo depois do nascimento no caso dos bebês, e pode ser causado na vida adulta por várias circunstâncias. O fato de ser dependente não retira nenhuma dignidade do ser humano – ao contrário, deveria ser um reforço à sua proteção.
Barroso ainda alegou que a criminalização do aborto viola “o direito à integridade física e psíquica” da mãe. Como se o aborto, ainda que realizado dentro de um hospital de ponta, não fosse um procedimento que também tem riscos, ou como se transformar uma mãe em cúmplice da morte do próprio filho não implicasse uma enorme carga psicológica, atestada por diversas pesquisas. Ou como se devêssemos todos ter o direito de matar aqueles que nos fazem passar por “tormentos”, para usar a expressão de Barroso. E o ministro ainda apresentou um falso dilema, ao dizer que o Estado tem “o dever de estar dos dois lados”, citando quem deseja ter o filho e quem não deseja tê-lo. Falso dilema porque deixa de lado, deliberadamente, justamente o maior afetado por um aborto: o filho indefeso e inocente que terá sua vida eliminada.
Se há algum acerto no texto do voto de Barroso, está no trecho em que admite que “o aborto é uma prática que se deve procurar evitar, pelas complexidades físicas, psíquicas e morais que envolve. Por isso mesmo, é papel do Estado e da sociedade atuar nesse sentido”, inclusive – e especialmente – com assistência à gestante. Mas teríamos de ir além. O aborto é uma prática que se deve procurar evitar, antes de mais nada, por consistir na eliminação deliberada de um ser humano, repetimos, indefeso e inocente. Por isso jamais se pode compactuar com tentativas de legalizá-lo. Admitir o aborto é rebaixar o valor da vida humana.
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