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As greves no serviço público federal são anunciadas como "gerais" e os condutores se esforçam para causar a impressão de que vão parar o país, criando situação política que genuflexionará o governo. Nesse ambiente, alguns anciãos leninistas se excitam imaginando, alfabetizados nas cartilhas de 1917, que as condições objetivas estão postas e basta aguardar para que a velha ordem desande e o novo mundo surja do caos, conduzido pela vanguarda que compreende os movimentos da história a partir da monocausalidade material.

Greves epidêmicas, leniência dos estamentos médios do poder, alienação da magistratura, insubordinação da força policial, governo titubeante ante o travamento de pontos vitais da economia. Só falta um Kerensky para o quadro se tornar reprodução muito próxima da situação que ensejou a aurora do socialismo! Assim, assistindo às manifestações dos grevistas em pontos marcados para boas imagens na televisão, o senil comunista (que pode ter uns 20 anos) vai para a cama sonhando com as condições objetivas para a revolução. Enquanto delira, o Brasil profundo trabalha e nem percebe que tudo está à beira da mudança para ficar do jeito de sempre.

Do outro lado da rua, a vovó, que foi a Woodstock e não voltou, vê o noticiário angustiada com a decadência sem elegância, mas, ao mesmo tempo, se consola com a convicção de que está se aproximando o ponto de mutação, quando as condições cíclicas da vida completam o giro e a luz, banida pela maldade humana, retornará. Shangri-lá está chegando para todos os que sentem as energias cósmicas. Desejando paz e amor, condições subjetivas ocorrerão para o mundo mudar naturalmente. As confusões nos aeroportos, portos, estradas, aduanas são estertores da velha ordem que naturalmente cederá passo à fraternidade e à consciência comunitária. A vovó não dorme. A sua vida é curta para desperdiçar com esse luxo fisiológico. Insone, quer ver a mutação acontecer.

De manhã, ela e o senecto socialista se encontram na fila da padaria. A prosa começa tímida e logo percebem que há muito em comum, embora seus ídolos não sejam os mesmos. Não vivem o mundo como é, mas como deveria ser, e esperam que o futuro chegue num salto sobre o presente. Ainda que não entendam claramente o palavreado um do outro, a fé no porvir os aquece como experiência quase religiosa, revelação epifânica. Atraídos pela identidade, perdem a noção do tempo.

Do outro lado do balcão, a dona da padaria pede pressa aos dois distraídos que atrasam as outras pessoas. Na hora de passar o cartão de débito, ela aproveita para entrar na conversa e dizer que o ponto da virada está prestes a ocorrer porque a nova geração está mais espiritualizada e há milhares de compartilhamentos do bem no Facebook. No fim da fila, me lembro de ela ter dito algo parecido quando o Orkut era o tal. Apressada, querendo transmitir sua tese, sugere leituras sobre o ponto da virada que, assevera, é ciência pura. Os três se despedem inconclusos.

Olho para o televisor perto de onde bebo um pingado e servidores públicos, cujos salários médios são dez vezes superiores aos dos brasileiros que labutam na iniciativa particular, bradam por aumentos remuneratórios. Num muxoxo, murmuro para eu próprio ouvir que as condições objetivas do ponto de mutação talvez nos levem à virada em direção ao capitalismo. Fé, todos têm.

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