Quinze anos após o sequestro do ônibus 174 na Rua Jardim Botânico, zona sul do Rio, Gilson Gonçalves, pai da refém assassinada, não recebeu um centavo da indenização determinada pela Justiça. O governo do Estado do Rio foi condenado a pagar R$ 50 mil e uma pensão vitalícia de três salários mínimos, mas a Procuradoria Geral do Estado alega que “só pode efetuar o pagamento após a expedição do precatório, o que ainda não ocorreu”.
Na tarde de 12 de junho de 2000, a professora Geisa Firmo Gonçalves, de 21 anos, saiu da favela da Rocinha (zona sul) com a amiga Damiana Nascimento de Souza, então com 40, para descontar cheque de R$130 em agência bancária no Jardim Botânico. Era o pagamento pelo trabalho de artesanato que fizeram para o Dia dos Namorados, encomendado pelo shopping Fashion Mall, em São Conrado, perto da Rocinha, onde moravam.
“Pegamos o ônibus juntas e infelizmente fomos separadas também juntas”, disse Damiana.
Após quase cinco horas de ameaças e torturas aos onze reféns, o sequestrador Sandro do Nascimento, sobrevivente da chacina da Candelária (1993), desceu do ônibus agarrado a Geisa, apontando o revólver para ela. No desfecho da negociação, o soldado Marcelo Oliveira dos Santos, de 27 anos, do Batalhão de Operações Especiais (Bope) da Polícia Militar (PM), avançou na direção dos dois com um fuzil e atirou, atingindo Geisa de raspão. Sandro e ela caíram no asfalto, e o criminoso disparou três vezes contra a professora.
Damiana sofreu um derrame dentro do ônibus, durante o sequestro. Ficou quase seis anos sem falar e andar. “Quando voltei a falar, ninguém entendia nada, mas fiz fonoaudiologia e melhorei. Foi uma vitória. Vivo um dia após o outro. Não recebi nada do Estado até hoje, nem uma aspirina”, disse ela, que era agente comunitária e trabalhava em creche da prefeitura na Rocinha. Se aposentou por invalidez. Aos 55 anos, conta que Geisa tentou protegê-la.
“Ela me jogou debaixo do banco, queria me esconder.” Não adiantou. Damiana teve o revólver colocado dentro de sua boca - Sandro ameaçou uma estudante da mesma forma e simulou um assassinato.
“Se ele (Sandro) quisesse matar a gente, teria matado. Mas não queria. Ele queria torturar. Colocou a cabeça da Janaína (outra refém) nas minhas pernas e ameaçou explodir. Teve um momento em que perguntei: ‘Por quê?’ Ele falava da mãe assassinada, que a gente não sabia o que ele tinha passado nos presídios e nas ruas. Disse que não podia ser preso, porque seria morto. Quando ameaçava matar a gente, dizia que a última bala seria dele.”
Sandro foi asfixiado e morreu no carro da PM, a caminho da delegacia. Dois anos depois, os cinco PMs que o acompanharam no camburão foram julgados e absolvidos. A reportagem tentou contato com os policiais por meio do advogado Clovis Sahione, que os defendeu à época, mas eles não deram entrevista. Sahione disse que o capitão que chefiava o grupo deixou a PM. Procurada, a corporação não informou onde os outros policiais trabalham. O coronel José Penteado, que comandou toda a operação, se aposentou. O soldado Marcelo dos Santos deixou a corporação.
Liberado por Sandro, o refém Carlos Leite Faria desceu do ônibus pela janela e foi preso por policiais sob acusação de ser comparsa do assaltante. Há 3 anos, ganhou ação por danos morais na Justiça e foi indenizado em R$ 60 mil. “Ele estava com um relógio no pulso e outro no bolso, da filha, que levava para conserto. Na visão da polícia, isso configurava a suspeita. Foi um pesadelo. O caso 174 é um exemplo de como não se deve atuar, em todos os aspectos”, disse o advogado de Faria, João Tancredo.
O advogado Delano Cruz, que representa o pai de Geisa, radicado no interior do Ceará, lamentou o atraso na indenização. “Quinze anos depois, a família não recebeu nada, apesar de não caber mais recurso. É retrato da falta de efetividade das decisões judiciais. Houve erro da polícia, por isso o Estado foi condenado em 2012, mas nunca entrou em contato, não tem o menor interesse. Não paga e fica por isso mesmo, lamentavelmente.” Geisa virou nome de escola em Fortaleza (CE), onde nasceu e foi sepultada, em funeral com cerca de 3 mil pessoas. Sandro foi enterrado como indigente, um mês após o sequestro.
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