Congresso
Mudança no Código Penal descriminaliza a ortotanásia
A reforma do Código Penal, em curso no Congresso Nacional, poderá tirar as dúvidas que recaem sobre a ortotanásia. Hoje, ela pode ser tipificada como homicídio qualificado, pois a vítima está indefesa. Pelas propostas, não haverá crime quando o médico deixar de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente em caso de doença grave irreversível, e desde que isso esteja atestada por dois médicos e haja consentimento do paciente, ou, na sua impossibilidade, de ascendente, descendente, cônjuge, companheiro ou irmão.
"Nem a Igreja Católica, talvez a mais intransigente defensora da sacralidade da vida, defende a vida a qualquer custo", diz o pediatra Gabriel Wolf Oselka, coordenador do Centro de Bioética do Conselho Regional de Medicina de São Paulo. A Igreja não se opõe à ortotanásia, que é a morte natural, sem a interferência da ciência ou tecnologia para abreviar a vida ou prolongá-la mesma posição defendida pelo Conselho Federal de Medicina.
Por segurança
Na dúvida, maioria dos médicos prefere prolongar o tratamento
Coordenador do Centro de Bioética do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, o pediatra Gabriel Wolf Oselka acredita que todo médico seja contrário à distanásia, mas teme as consequências legais. Isso acontece porque o ato de limitar os recursos que prolongam a vida de um paciente terminal se confunde com a eutanásia. "Até procuro fugir desses termos para não criar mais confusão. Estamos falando de dar ao paciente a opção de decidir o que ele quer", diz.
Não há registro no Brasil de médico condenado por desligar o aparelho com anuência de um paciente terminal. Mas, na dúvida, a maioria prefere prolongar o tratamento porque a legislação brasileira não é clara e algum juiz poderia interpretar o ato como omissão de socorro ou eutanásia. Por isso, os médicos acabam agindo mais pelo temor de uma condenação judicial do que pelo diagnóstico clínico.
Artigo
O caso envolvendo a chefe-médica da Unidade de Terapia Intensiva Geral do Hospital Universitário Evangélico de Curitiba deve ser apurado e noticiado com a máxima prudência para não resultar em prejuízos irremediáveis.
Leia a íntegra do artigo do advogado Roberto Rolim de Moura Júnior.
Durante sete anos a médica Virgínia Helena Soares de Souza atuou na UTI do Hospital Evangélico de Curitiba, até ser presa há cinco dias acusada de homicídio por precipitar a morte de pacientes. A repercussão lançou mais pressão sobre quem já trabalha no limite entre a vida e a morte, num ambiente confinado, com alto nível de estresse, lidando com UTIs lotadas, dramas familiares e casos perdidos, com o risco de tomar uma decisão errada. E não há maior conflito ético para um médico do que ter de decidir pela vida ou pela morte de um paciente.
O médico intensivista é antes de tudo um obstinado, diz a presidente da Sociedade de Terapia Intensiva do Paraná, Cíntia Grion. Ele insiste na terapêutica para reverter o quadro do paciente porque a maioria é tratável. Há, porém, casos irreversíveis. É nesse ponto que os menos experientes têm dificuldades para encontrar o momento de interromper o tratamento. Mas existe a hora certa para desistir de uma vida? A decisão acaba se pautando mais pela ponderação jurídica do que pelo diagnóstico clínico.
Distinção
O dilema de desligar ou não o aparelho que mantém alguém vivo decorre em grande parte das diferentes interpretações de três palavras cuja raiz é a mesma: thanatos, ou morte. A confusão se instala quando o médico acredita que ao promover a ortotanásia terá as mesmas consequências penais da eutanásia, e assim opta pela distanásia. Tudo fica mais claro quando se distingue uma da outra.
Na eutanásia, o paciente terminal ou sua família decide pela interrupção dos fenômenos biológicos com a retirada dos aparelhos ou medicamentos que o mantêm vivo. A ortotanásia consiste em suspender o tratamento que mantém artificialmente a vida, deixando o paciente morrer de forma mais confortável. Já a distanásia prolonga artificialmente a vida de um doente terminal sem perspectiva de cura ou melhora.
Mas sob que vértice se discute a bioética da distanásia? Muitos pacientes em fase terminal têm a vida prolongada não por opção própria, mas porque os médicos não oferecem a opção pelo fim do tratamento. O tema recém ganhou corpo nos fóruns médicos. Só de dez anos para cá se teve a coragem de debatê-lo abertamente. Nos Estados Unidos, ganhou normatização em 2001; no Brasil, entrou em 2009 para o código de ética do Conselho Federal de Medicina, que condena a distanásia.
Há o temor do vazio interpretativo deixado pela legislação. O Código Penal tipifica a eutanásia, mas nada fala da ortotanásia, que num tribunal poderia ser interpretada como homicídio qualificado porque a vítima está indefesa. Já do ponto de vista ético, a suspensão ou a não introdução de um tratamento são equivalentes, observa Cíntia.
Decisão deve incluir a família
A única segurança para o médico é ouvir a família no caso de interromper o tratamento de um paciente terminal. Numa decisão em conjunto, os familiares saberão não se tratar de homicídio. Os fóruns médicos no Brasil, na Europa e nos Estados Unidos deixam claro que nenhum médico pode tomar sozinho a decisão, mesmo em caso de distanásia. "Não é ético a decisão ficar só nas mãos do médico", diz a presidente da Sociedade de Terapia Intensiva do Paraná, Cíntia Grion. Contudo, não é fácil mesmo quando a família é convidada a opinar.
A legislação brasileira reconhece a morte encefálica. Mas Cíntia já se deparou com casos em que o paciente permaneceu morto durante dias e família não aceitava o diagnóstico porque o coração ainda batia. Um grande dilema, porque sempre há pacientes à espera do leito da UTI. "Mas não se pode passar por cima dos sentimentos da família", diz Cíntia. Há nesse comportamento uma mistura de questões culturais, religiosas, afetivas.
Quanto mais tempo de UTI, mais baixa é a diária do SUS
Autor de dois livros sobre bioética e biodireito, o professor e advogado criminalista Roberto Rolim de Moura Júnior aponta, em um artigo, o equívoco do Sistema Único de Saúde para o pagamento das diárias das UTIs. Há um sistema de pontuação que decresce quanto mais o paciente permanece na UTI. "O que deveria ser um estímulo para a rotatividade, na verdade penaliza o serviço intensivo pela piora do paciente, quando exige a sua estada de permanência perante o quadro clínico do doente ainda instável e grave", diz.
Não só isso, o advogado salienta que a UTI é um ambiente confinado, fechado, e com alto nível de estresse entre os profissionais, com longas jornadas de plantão. "O ambiente é insalubre, repleto de uma infinidade de bactérias, vírus, fungos, que podem ser transmitidos pelo contato com fluídos corporais, sangue, saliva, urina e fezes, e pelo ar", descreve.
"Se aliarmos a isso os problemas pessoais da equipe da UTIs, médicos, fisioterapeutas, enfermeiros e técnicos de enfermagem, técnicos de raio X, além dos profissionais que passam em visitas diárias (nutricionista, neurologista, ortopedista, etc) é fácil de imaginar que as diferenças existem", pondera. O drama, avalia, reside em manter o trato e a convivência diária entre os profissionais, livres de conflito. "Este é o desafio".
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