Claudilene baixa os olhos e acarinha o rosto do filho impresso em um papel protegido por uma folha de plástico. No retrato, Clayton da Silva Modesto sorri ao lado da cadela Rajada. A imagem é a mesma que estampou 120 camisetas no fim de agosto passado, quando amigos e parentes saíram em procissão de onde o menino morava, no Morro do Cantagalo, em Copacabana, para o Cemitério São João Batista, em Botafogo, zona sul do Rio. Um dia antes, a mãe reconhecera o menino em outra foto, oferecida por bombeiros que encontraram seu corpo com marcas de tiro numa mata próxima ao Morro da Babilônia, no Leme.
Clayton morreu aos 17 anos, um a menos que o pai quando assassinado, em 1999, no Morro do São Carlos, no bairro do Estácio, região central. Reprisou também o destino de milhares de adolescentes do país em 2015. O ano deve ficar marcado como o período em que homicídios se tornaram causa de mais da metade das mortes de brasileiros de 16 e 17 anos, conforme indica levantamento feito pelo sociólogo da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais Julio Jacobo Waiselfisz, autor do Mapa da Violência, a pedido do jornal O Globo. Segundo a projeção, 50,1% dos mortos nessa faixa etária — em que há maior incidência de homicídios entre as causas de morte — serão assassinados. A proporção era de 46% em 2013, período mais recente em que estão disponíveis números do Ministério da Saúde. Naquele ano, foram 3.749 óbitos por violência nessas idades. Em 2015, oito em cada dez mortes de jovens no Espírito Santo devem resultar de homicídios. No Rio, a fatia chegará a 45,4%.
“Agora, a minha única alegria são os netos. O jeito é tentar seguir em frente, mas quero justiça. O meu filho não merecia o que aconteceu”, desabafa Claudilene, de 33 anos, mãe de outra adolescente de 18 e avó de uma menina de 4 e de um menino de cinco meses, filho de Clayton.
Jacobo explica com uma metáfora o porquê de os dados do triênio 2011 a 2013 serem um mau presságio para os três anos seguintes. “Os números são extremamente preocupantes. É como se tivéssemos um paciente com 41°C de febre, déssemos um remédio, e a temperatura continuasse a aumentar. Ou o remédio não está adequado ou as doses não estão corretas. Mas não se vê algo sendo feito para mudar isso. Tudo parece indicar que esse tipo de genocídio está longe de diminuir”, prevê, criticando a morosidade no estabelecimento de uma política nacional de enfrentamento à violência e na discussão das reformas do Código Penal, do sistema penitenciário e das polícias.
O Mapa da Violência mostra que, em 2013, a taxa de homicídios de brancos de 16 e 17 anos foi de 24,2 por cem mil, enquanto o índice para jovens negros na mesma faixa é de 66,3 em cem mil. Proporcionalmente, morreram quase três vezes mais negros que brancos, informa o estudo.
“O que estamos vendo no Brasil é um aumento da letalidade numa camada muito específica da população: o jovem, de periferia e negro. É difícil não pensar qual a razão de esse não ser o tema de maior importância da agenda pública brasileira. É como se estivéssemos dizendo que algumas pessoas são mais matáveis que outras”, afirma Atila Roque, diretor-executivo da Anistia Internacional no Brasil. “Isso é particularmente terrível em um momento da História do país em que vemos crescer a demanda por igualdade. A questão colocada pelo resultado desse levantamento é: nossa sociedade decidirá tender para essa integração ou para a exclusão e o extermínio?”
Notícias que exemplificam o levantamento se multiplicam com os números. Em setembro, foi assassinado na Providência, Centro do Rio, Eduardo Felipe Santos Victor, de 17 anos. A cena da morte foi alterada por policiais militares. Em julho, Walisson Pereira dos Santos, alvejado após uma discussão motivada por uma pipa, no município de Serra (ES).
No mesmo mês, Mateus Andrade da Silva foi atingido na Região Metropolitana de Natal. Caique Bastos dos Santos, Natanael de Jesus Costa e Rodrigo Martins Oliveira foram três das 12 vítimas da chacina ocorrida em janeiro no Cabula, em Salvador. A eles se somam outros tantos cujos nomes são omitidos. Poderão chegar a 42 mil entre 2013 e 2019, segundo o Índice de Homicídios na Adolescência, desenvolvido pelo Unicef em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência, o Observatório de Favelas e o Laboratório de Análise da Violência da Uerj.
O secretário nacional da Juventude, Gabriel Medina, diz que os números refletem “um avanço do conservadorismo” na sociedade brasileira, em temas como o pedido de redução da maioridade penal. “Há um clima de que o adolescente é impune, e isso parece legitimar uma ação mais forte, inclusive de forças de Segurança Pública, que leva ao óbito dos jovens. Precisamos encarar esse tema como desafio de Estado”.
De acordo com Medina, a secretaria está reformulando o plano Juventude Viva, lançado em 2013 e voltado para a prevenção da mortalidade de adolescentes. “A reformulação ocorre, por um lado, porque o plano muitas vezes não dialogava com estruturas de segurança pública. Por outro, precisávamos fazer uma discussão sobre indicadores de multicausalidade de violência. Todos esperávamos que a diminuição da pobreza faria cair também a violência, mas isso não aconteceu, o que demonstra a complexidade desse tema. O plano entrará no Pacto Nacional pela Redução dos Homicídios, em discussão no governo”.