O sertão é só silêncio quando Josemary Gomes da Silva acorda. Ela levanta por volta das 3 horas, horário em que a maioria dos pouco mais de dois mil habitantes de sua Algodão de Jandaíra, na Paraíba, ainda dorme. Mas Josemary, de 30 anos, não tem tempo a desperdiçar. Ela cria sozinha os cinco filhos. Gilberto, seu caçula, nasceu há quatro meses e é um dos bebês com microcefalia associada ao zika. Josemary precisa levar o menino ao hospital, em Campina Grande. O marido se foi antes de Gilberto nascer. E ela ficou só.
Vive com os meninos e o desafio de criar uma criança com necessidades especiais por toda a vida. A microcefalia e outros problemas neurológicos que têm sido associados ao vírus zika são um drama para qualquer família. Mas, para um grupo crescente de mulheres sós, algumas abandonadas assim que é dado o diagnóstico de microcefalia, a tragédia é devastadora.
- Estudos apontam maior taxa de microcefalia em ‘era pré zika’
- Pesquisadores da UFRJ anunciam sequenciamento completo do genoma do zika
- OMS alerta para casos de síndrome de Guillain-Barre em países com surtos de zika
- Aedes, a praga que veio do Egito e que um dia foi erradicado no Brasil
- Número de casos confirmados de microcefalia sobe para 462 no Brasil
“Sou uma destinada a viver sozinha”
A distância até Campina Grande nem é tão grande. Cerca de uma hora de viagem de ônibus. Mas é feita sozinha, com um menino que chora muito — uma característica comum em bebês com microcefalia. Sem ajuda alguma, ela arruma a casa, deixa a comida pronta para os outros filhos, dá banho em Gilberto e sai, dia escuro ainda.
“Sou uma destinada. Destinada a viver sozinha. Nunca tive a ajuda de ninguém. Só aqui no hospital tenho encontrado algum apoio, dos funcionários e também das outras mães. A gente se apoia muito. Ficamos amigas”, conta ela, sorrindo.
Josemary só teve meninos. E Gilberto foi um dos primeiros bebês com microcefalia a ser atendido no recém-criado serviço do Hospital Municipal Pedro I, de Campina Grande, um dos poucos do país a oferecer assistência médica, psicológica e fisioterápica para essas crianças e suas mães.
A psicóloga Jaqueline Loureiro trabalha lá. Vai para o Pedro I atormentada pela dúvida: como preparar as mulheres que atende para uma vida de incertezas? Volta para a casa sem respostas.
“Há muitas mães sozinhas aqui. Para elas, tudo é mais difícil. Temos dois casos recentes de maridos que foram embora logo depois da ultrassonografia. Não consigo realmente imaginar o que essas mulheres sentem. O que é sentir tamanho desamparo”, afirma Jaqueline.
Todos os dias, a partir das 7 horas, as mães começam a aparecer. Sobem com os filhos no colo as escadas de degraus mais altos que o normal do prédio de arquitetura peculiar, construído pelos maçons de Campina Grande em 1932.
Josemary é sempre uma das primeiras a chegar. “Não tenho tempo para atraso não. No dia em que tive Gilberto, senti as dores e já me arrumei. Peguei o ônibus e vim sozinha para a maternidade aqui de Campina Grande. O menino nasceu e voltei com ele para casa do mesmo jeito. E assim levo a vida”.
A mãe de Lara, de dois meses, não teve forças para levar a filha à consulta. Em seu lugar foi a prima, Maria José da Silva. Lara é muito agitada. Praticamente não dorme e chora quase todo o tempo em que está acordada. A menina é filha única. E a mãe praticamente enlouqueceu. Ficou desatinada quando soube que o bebê que esperava tinha microcefalia. E só piorou desde que ele nasceu. O pai vive com as duas.
“Mas ele não ajuda. Põe algodão no ouvido para não escutar o choro da menina. E a mãe, que nunca tinha cuidado de criança antes, vive desesperada. Eu ajudo como posso, mas é difícil”, diz Maria José.
Outra que chega sozinha é Francileide de Lima, de 30 anos. Mãe de Rafael, de 3 meses, ela hesita antes de responder se é casada. Vive em Galante, distrito de Campina Grande, com os cinco filhos e o pai de alguns deles.
“Vou me dedicar ao Rafael. Ele precisa de mim. Procuro não pensar em como vai ser daqui para frente”, diz.
Responsável pela triagem e o primeiro atendimento, a enfermeira Clarissa Gonzaga faz questão de receber as mulheres com carinho e sorrisos. “No fundo, é o que tenho a oferecer. Algumas mães não têm noção da gravidade das limitações dos filhos. E falam coisas como: ‘Imagina o dia em que esses meninos todos estiverem correndo por aqui? Não vamos dar conta’. Esse dia, para alguns deles, nunca chegará. E como elas os trarão maiores para cá, sem andar? Como consolá-las? Eu só tenho perguntas. Não sei”.