Provavelmente meu netinho nos primeiros meses de vida já foi mais fotografado que todos os seus antepassados até o fim dos anos 90. Está em curso um processo frenético de duplicação do mundo. Em cada canto da Terra, a todo instante, alguém fotografa, filma, grava. O desejo de replicar o mundo não é exatamente uma coisa nova começou nas cavernas, aquelas figuras rabiscadas na pedra, homens e animais congelados em ação. E, desde o primeiro anônimo que deu a ideia, não paramos mais de tentar copiar coisas e pessoas. Hoje vendem-se telefones não pelo que falam, mas pelo que gravam, filmam, fotografam. Por que esse impulso? Não sei. Talvez o desejo instintivo de paralisar o tempo; ou, antes, de sair dele para contemplá-lo a distância. É o medo da morte, ou, dizendo de modo mais delicado, da ausência, que nos levaria a fixar pessoas e coisas em duplos incompletos, que já envelhecem no exato instante em que surgem.
Como as coisas e pessoas são todas incopiáveis, na verdade vamos criando falsos duplos em intuições estéticas; todo senso de beleza é um desejo de imitação e o seu concomitante fracasso. Num de seus contos, Borges imagina um mapa que, no desespero da fidelidade, replica fisicamente o objeto, como se a reprodução de Curitiba fosse outra Curitiba idêntica erguida num planalto vazio. "Até hoje veem-se as ruínas destes mapas no deserto", encerra ele se bem lembro das palavras lidas 30 anos atrás, replicando agora outro tempo que vivi.
Recuperar o tempo é trabalho que por milhares de anos manteve-se no recorte do instante; já a replicação do tempo em movimento é uma conquista recente, desde as traquitanas primitivas do século 19 até o 3D de hoje. O mesmo século 19 criou o daguerreótipo, reproduzindo pessoas como esfinges paralisadas pelo demorado tempo de exposição. Mas e a voz? Um artigo da revista The New Yorker de 19 de maio ("Uma voz do passado", de Alec Wilkinson) conta descobertas sensacionais nesta área, que já tem nome "arqueofonia". O físico americano Carl Haber teve a ideia de escanear os sulcos dos velhos e hoje impraticáveis cilindros de cera de Thomas Edison, com as primeiras gravações da voz humana, digitalizar os resultados e reviver, por computação, os sons gravados.
O mais incrível foi a recuperação dos registros de um certo Édouard-Léon Scott de Martinville, um parisiense que deixou folhas de papel com "gravações" de voz linhas marcadas sobre fuligem (lembrando a imagem de um eletrocardiograma de hoje). A ideia experimental dele não era reproduzir a voz, mas apenas criar um "desenho" do som que fosse capaz de ser fielmente "lido". Pois foi, mais de 150 anos depois: Haber conseguiu digitalizar a sequência de linhas e, hoje, podemos ouvir novamente uma fantasmagórica versão de Clair de Lune, o som gravado mais antigo que se conhece. O resto é silêncio.
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