Existe uma mentalidade de fundo religioso – obviamente equivocada – de que a mulher é inferior ao homem. No extremo, essa forma de pensar é responsável pelos 46,1 mil assassinatos de mulheres em uma década no Brasil, conforme revelou pesquisa divulgada na última segunda-feira pela ONU, Organização Pan-Americana de Saúde e governo federal. A lógica perversa por trás desses homicídios é de que, se eles são superiores, elas têm de se submeter a seus caprichos – e a recusa seria motivo de violência punitiva.
A concepção de que a mulher é inferior ao homem existe nas mais variadas culturas. Mas no Ocidente foi (e ainda é) sustentada por uma determinada interpretação da narrativa religiosa: feita da costela de Adão, Eva (e a mulher por extensão) seria um homem incompleto; uma pequena parte dele. Seria ainda a tentação, aquela que leva o companheiro a provar o fruto proibido, condenando todos à queda.
Eva é feita da mesma carne que seu companheiro. Tem, portanto, natureza idêntica
Essa leitura do Gênesis contaminou a cultura ocidental e contribui para manter a dominação masculina sobre o feminino. Também ocultou outras interpretações mais compatíveis com o que se espera de uma religião – que, se tivessem se consagrado, talvez mudassem a forma como a mulher foi tratada através dos séculos.
A alegoria da costela de Adão pode muito bem ser vista como símbolo de igualdade de gênero – ainda que, escrita em uma sociedade patriarcal, tenha colocado o homem como o primeiro humano a ser criado. Eva é, afinal, feita da mesma carne que seu companheiro. Tem, portanto, natureza idêntica. Deus tampouco tirou de Adão um osso de uma parte inferior (de seu pé) ou superior (da cabeça) para dar vida a ela. A costela está na lateral do corpo. Este é o lugar da mulher: não abaixo nem acima, mas ao lado do homem. Mais um sinal de igualdade.
Já o argumento de que Eva (e a mulher) é a tentação do homem não se sustenta nem mesmo pela lógica machista. O sexo dito forte não seria, por meio dessa narrativa, fraco ao ceder à tentação? E não estaria em pé de igualdade com a mulher ao cometer o mesmo equívoco? É claro que sim. Mas essa constatação tão natural não foi conveniente por muito tempo. Ficou esquecida.
Há ainda quem veja no próprio Gênesis um resquício de que Deus revela uma natureza feminina – algo que pode fundamentar a argumentação em favor da igualdade entre homens e mulheres. O nome Adão, em sua etimologia hebraica, liga-se tanto a adamá (barro vermelho) como a adom (vermelho) e dam (sangue). O homem é, portanto, fruto do parto da Terra – mito que coincide com a de sociedades ancestrais que cultuavam a Deusa-Mãe.
Mesmo no cristianismo há a crença de que Deus tem uma face feminina, que se expressa por meio da sabedoria. O culto a Santa Sofia – a Santa Sabedoria, ou sabedoria divina – é comum nas igrejas ortodoxas do Oriente. Mas se perdeu na tradição latina.
E, se Deus contém tanto o feminino como o masculino, homem e mulher são igualmente expressões dEle. São, portanto, iguais em imagem e semelhança. Essa é uma sabedoria que poderia ser resgatada.