Até queria ignorar. Escrever sobre outros temas. Mas não dá. Em 19 anos de jornalismo, não me lembro de ter presenciado dias tão surreais na política brasileira quanto os desta primeira quinzena de dezembro. A enorme distância que separa as “autoridades” do restante dos cidadãos é antiga. Mas nunca “eles” estiveram tão apartados de “nós”. Vivem num mundo de fantasia cada vez mais desconectado da nossa realidade. Coisas bizarras acontecem nos altos escalões dos poderes como se fossem normais. Brasília virou uma grande Macondo. A sucessão de acontecimentos, se não fosse trágica, seria cômica.
O mês começou com a apresentação de um grande escárnio com a maioria dos trabalhadores – o projeto de reforma da Previdência. Reconheço: é preciso mudar a forma de pagamento das aposentadorias para que o país não quebre no futuro. Mas essa proposta mantém a atual divisão da nação em duas categorias desiguais. E ofende a inteligência. Draconianas, as novas regras vão afetar praticamente todos os trabalhadores da iniciativa privada, mas apenas 5% dos servidores públicos federais. Todos os militares, bombeiros e policiais estão de fora.
Só novas eleições podem dar um pouco de senso de realidade aos governantes
Parece que o rombo só é provocado pela iniciativa privada. A verdade é bem distinta dessa conclusão. Os 33,4 milhões de aposentados pelo INSS (com benefício médio de R$ 1,1 mil) provocam um déficit de R$ 86 bilhões. Já o 1,07 milhão de aposentados do setor público, que ganham R$ 7,5 mil em média, deixam um buraco de R$ 72,5 bilhões nas contas.
Quase ao mesmo tempo em que o teor da reforma previdenciária ia ficando claro, o país assistia à crise institucional entre os poderes se transformar em carnaval institucional, para usar a expressão cunhada pelo colunista Janio de Freitas, da Folha de S.Paulo. Afastado liminarmente da presidência do Senado, Renan Calheiros descumpriu descaradamente a ordem judicial. E o STF se apequenou ao ignorar isso e não puni-lo. A lei vale para todos, menos para Renan: é isso que disse o Supremo. E o senador, no dia seguinte, ainda riu da cara do país com esta declaração: “Decisão do STF é para se cumprir”.
Aos poucos, também foi sendo revelado que o carnaval institucional havia sido articulado pelas cúpulas dos três poderes. Um acerto entre poderosos. O presidente Michel Temer, entre outros argumentos, estaria preocupado com o risco de o Senado não votar a PEC do Teto, pedra angular de seu governo. PEC cujo objetivo é conter gastos. E que tem sido motivo de grande discussão. Inclusive entre 600 prefeitos baianos que se reuniram, na semana passada, num resort de luxo – com diárias de R$ 1 mil – para debater o assunto. Quem pagou a conta? Órgãos federais que prometem limitar as despesas.
Diante disso, como podemos acreditar que a tesoura da PEC não vai sobrar no bolso alheio, nos serviços essenciais, e não nos privilégios das altas autoridades? Aí é preciso voltar um pouco no tempo e lembrar que um dos primeiros projetos articulados por Temer após assumir a Presidência foi o reajuste salarial para diversas categorias do serviço público – criando um gasto adicional de R$ 56 bilhões até 2019. Dentre as beneficiadas, várias carreiras que já ganham bem – inclusive os ministros do STF, cujo salário passa de R$ 33.763 para R$ 39.293.
A semana do surrealismo, então, fechou com a delação-bomba da Odebrecht, que agora atinge muitos dos que há oito meses denunciavam o mar de lama no governo do PT e cantavam loas à Lava Jato. Agora, o discurso dos velhos governistas foi plagiado pelos novos. Inclusive na boca de Temer, o maior beneficiário da queda de Dilma Rousseff. Falam igual aos antecessores. Como também é igual a credibilidade dos dois governos diante da população.
Diante de tudo isso, parece só haver uma saída: novas eleições, que podem dar um pouco de senso de realidade aos governantes. Só assim eles serão obrigados a recolocar os pés no chão, nem que seja para conquistar votos. Só isso vai tirar o país do surrealismo em que se meteu.
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