Ele sempre pensou com seus botões: tio tem de ser tiozão; pais educam, tios deseducam – no bom sentido, é claro. E que melhor maneira de fugir das regras do que fazer brincadeiras, digamos, porquinhas? Vai por mim: as crianças adoram!
Da teoria à prática: o tio bobão e a sobrinha malandrinha brincavam de fazer cocô de mentirinha. Com direito a som de pum com a boca. A menina então pede:
“Quero fazê cocô!”
“Você já tá fazendo.”
“De verdade.”
“Então tá.”
O tio a põe no vaso sanitário. A patente parecia uma boca gigante que ia engoli-la – o mundo, afinal, é feito para adultos. Mas OK. Necessidades feitas sem nenhum incidente.
“Agora você me limpa”, diz a menina.
Humm! O tio nunca tinha passado por aquilo. Mistura de nojinho com medo de machucar o bumbunzinho da sobrinha ao usar muita força pra limpá-la. Marinheiro de primeira viagem. Fazer o quê?
“Peraí! O tio vai chamar o teu pai.”
“Por quê?”
“É porque o tio não sabe...”
Rápida no gatilho, ela dispara a desconcertante pergunta:
“Você não limpa o teu bumbum?”
O tio achou que estava implícito que ele só não sabia limpar uma criança. Mas crianças não entendem o que está subentendido. O pior é que muitas vezes nós achamos que aquilo que falamos está claro para todos – incluindo adultos. Mas não está. É quando ocorrem os grandes mal-entendidos. E aí não tem jeito: sempre dá caca. E não é de mentirinha.
***
Muitas vezes nós achamos que aquilo que falamos está claro para todos – mas não está
Família reunida para o almoço de Páscoa. Conversa vai. Conversa vem. E alguém comenta ao alto sobre o verdadeiro significado da data: nada de coelhinho nem de ovos de chocolate. É aquela história: já não se faz mais Páscoa como antigamente. Mas quem falou não chega a concluir o pensamento – a ressurreição de Cristo, vocês sabem...
Curioso, o garoto pergunta ao tio:
“Por que, então, tem Páscoa?”
O tio tenta se redimir das brincadeirinhas escatológicas com os sobrinhos. De vez em quando tem de parecer sério. Essa é uma boa hora. Mas como explicar a ressurreição para uma criança? Ele titubeia um pouco, tentando achar o que dizer.
“Bem... É que Jesus... Você sabe quem, né?”
“Sei, diz o menino.”
Então o tio segue em frente. E dá a resposta, confiante:
“Bem, é que Jesus morreu. E depois viveu de novo no dia da Páscoa.”
Explicação perfeita, pensa o tio. Simples. Fácil de entender. Só que não! E vem a desconcertante pergunta (mais uma!):
“Então Jesus é um zumbi?”
Não, não vou pelo caminho fácil de dizer que os pais têm de ensinar religião aos filhos, que as crianças veem muita bobagem na internet, blablablá... Quero ir um pouco mais a fundo. Falar de fé. A fé, como se diz, é um salto no escuro: acreditar mesmo que a razão diga não. Crer com a inocência de uma criança. Não é simples tampouco fácil de entender. Parece um pouco com a ficção. OK, talvez histórias de zumbis não sejam o melhor exemplo... Mas quando vemos um bom filme ou lemos um livro que nos toca, encontramos algo de verdadeiro. E isso nos reacende a esperança. A fé – e essa é uma interpretação muito particular – age de modo semelhante dentro de nós.
***
Antes de começar, um aviso a pais, avós, tios: é muita maldade ter uma sala de estar cheia de bibelôs e proibir as crianças de brincar com eles. É como levá-las ao parque de diversões só pra comer maçã do amor e pipoca. Simplesmente não dá.
Agora, a história. Seduzido pela bailarina de gesso da sala da vó, o netinho pede:
“Pode?”
“Pode sim. Mas toma cuidado.”
Mais faceiro que um vira-lata no lixo, ele começa a brincar. Mergulha num mundo imaginário. Mas, de repente, um descuido. E ela cai. Como Maria Antonieta, a bailarina é decapitada. Desesperado, tenta grudar a cabeça no corpo. Uma. Duas. Três vezes. O guri percebe, então, que ela não é um brinquedo que pode ser remontado. Os olhos lacrimejam. O beiço vira uma tromba de elefante. E, então, explode em choro.
O garoto percebeu cedo que às vezes nós quebramos algumas coisas que podem não ter conserto. Tem gente que passa a vida sem aprender isso. Mas, se ele não tivesse ficado tão transtornado, iria perceber que pode ser que haja uma saída para o que parece insolúvel. A cabeça da bailarina foi colada. Quase não dá para perceber. E hoje ela continua lá, enfeitando a sala da avó.
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