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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Nunca vou esquecer a primeira vez em que pude andar de ônibus sem ser levado por um adulto ou ter de passar agachado na roleta. Foi uma verdadeira Viagem ao Centro da Terra, com escala no Calçadão da XV. Estava em companhia de um vizinho tão fedelho quanto eu. Tínhamos 10 anos, mas nos sentimos re­­pentinamente com 18, credenciados a assistir a um filminho da Matilde Mastrangi no Cine São João e a fumar um Mis­­tura Fina, com filtro.

Foi uma "sessão", como se dizia. Nos vimos escoltados até o ponto, como se estivéssemos só de ida para a Campanha da Itália. Partimos dando tchauzinhos pelas vidraças, sob olhares curiosos e debaixo de severas recomendações: "Cuidado para atravessar a rua", "não aceite balas de estranhos" e "aperte o dinheiro na palma da mão."

Ah, se eu escutasse o que mamãe dizia. Tempos depois, um fusca me atropelou, o que custou um talho na testa, uma estadia no PS do Cajuru e a certeza de que não nascera para a Me­­dicina. A última vez que aceitei uma bala – de uma colega de trabalho, de fato mulher muito estranha –, quebrei um dente e tive de repassar 500 mangos ao dentista para não ficar parecido ao Jed da família Buscapé. Quan­­to ao dinheiro na mão, melhor deixe: é vendaval.

Àquela altura da mocidade, óbvio, interessava mais se sentir emancipado – o que incluía no pacote um lanche na La Gôndola, sob a luz lilás das coberturas de acrílico do Abrão Assad – do que o significado do transporte coletivo. Um professor de Latim, tempos depois, se encarregou do assunto usando da fleuma de um Antônio Vieira ao discorrer sobre a palavra omnibus. Repeti a informação aos ventos, até por que era bem mais fácil do que o qui, quae, quod, o uso do genitivo ou a tradução das fábulas de Esopo.

O lado divertido do ônibus, contudo, me seria despertado por um padre – homem de virtudes divinas, apetite mundano e senso de humor diabólico. Um dia, numa roda de prosa, admitiu que sua maior fraqueza não era pudim de Leite Moça, mas cobiçar conversas alheias no ônibus.

Eu, que até então julgava ouvir confissões uma das tarefas mais estimulantes do estado clerical, tive de rever meus conceitos. Passei a prestar atenção ao trololó do "lotação". Nem cochicho escapa. O padre tinha razão. No confessionário, de joelhos, penitentes falam de si, com culpa e contrição. A bordo da Viação Glória ou Redentor, os passageiros falam dos outros, sem piedade. Seduzidos pela venial "papo furado" dão vida ao que os estudiosos chamam de "função social da fofoca". Sem ela, maus maridos se esconderiam entre quatro paredes, padeiros venderiam pão velho impunemente e divórcios seriam assunto só dos tribunais.

Claro – em geral, uma audição a bordo do Interbairros se assemelha a pegar um filme pela metade. A gente pensa que a dupla da frente está descendo lenha numa conhecida, mas está é tricotando sobre o capítulo da novela. "Acho que hoje à noite o Douglas mata a Simone. A bandida merece..."

Vale o risco. Afinal, vez ou outra as profundezas da alma são desvendadas numa Linha Norte-Sul. O busão é um laboratório da miséria humana, sob medida para um Dostoievski, um Zola. Há quem tente ler um livro rumo ao ponto final. Mas não tem ficção tão boa quanto a que passa pela catraca.

Dica. Se o ônibus for de longe, melhor. Mais tagarelas seus passageiros. Tome um Vila Rosinha, Vila Formosa ou Vila Sandra e verás. Se domésticas houver, ulalá. Elas enxergam suas patroas do mirante mais perfeito que existe – a porta da cozinha – e contam o que viram porta do ônibus adentro. Que Deus nos perdoe a orelha em pé e a cara de sonso. Tomara não seja pecado.

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